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Sexta-feira,
11/3/2016
Bar azul - a fotografia de Luiz Braga
Relivaldo Pinho
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Há uma fotografia de
Luiz Braga chamada Bar azul. Em um pequeno bar uma mulher olha pela janela enquanto uma criança, tentando equilibrar-se sobre uma mesa, tenta tocá-la. Ao lado, passam automóveis que, pela velocidade, vemos apenas as silhuetas. O bar, feito de madeira, com alguns indícios de alvenaria e pintado em azul com detalhes em vermelho, tem ainda a imagem de uma paisagem na parte superior de uma das paredes. Uma mesa e algumas cadeiras preenchem o centro. A paisagem parece ser de uma periferia da Amazônia, de Belém do Pará.
Toda e qualquer imagem pode suscitar várias interpretações. Essa não é diferente. Quando vi pela primeira vez, pensei que a imagem poderia servir como uma metáfora da região amazônica. Uma, se quisermos, metáfora-síntese.
A mulher na janela simbolizaria, junto com o ambiente, o habitante amazônico que contempla a realidade com um misto de desinteresse (essa seria a palavra correta?) e impotência diante da velocidade do progresso que passa. Progresso que contrasta com seu ethos que parece apenas lhe dizer respeito de modo circunstancial. Um existir, ao mesmo tempo, inevitável e inalcançável.
Pensando desse modo, estamos próximos do que Benjamin discute em Pequena história da fotografia[1] sobre as possibilidades da fotografia nos revelar, ou suscitar, outras maneiras de observarmos a realidade. Mais especificamente, estamos próximos de sua argumentação sobre o que ele denominou de “inconsciente ótico” e da busca, por parte do espectador, da “centelha do acaso”, que nem a técnica e perícia do fotógrafo podem eliminar.
O espectador estaria sempre em busca “do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás” [2]. É exatamente esse exortar da fotografia que se liga ao modo de vermos Bar azul.
Vemos ali uma certa metáfora de uma realidade. Não a realidade direta ou documental, e sim a realidade sugerida pelo nosso olhar e pelo olhar da imagem. Olhar da imagem porque a fotografia de Luiz Braga não tem um rosto nítido, não se trata de um retrato, está muito mais próxima de uma caracterização social (circunstancialmente existencial), do que de um registro documental ou personalístico.
Daí, talvez, podermos falar que a imagem proporciona uma certa reificação. Dito de outro modo: é só por meio da construção imagética, a do fotógrafo e a nossa (espectador), de nossa forma de organizar a mensagem, os signos, da mímesis da imagem, é que podemos voltar à própria realidade. Um antigo conceito filosófico ladeia essa idéia: verossimilhança.
Se de um lado a fotografia está ligada à habilidade do fotógrafo, de outro ela se separa de sua técnica quando o olhar humano diferencia-se do olhar da câmera. “O inconsciente ótico” está ligado a essa forma da realidade surgir na imagem, forma muitas vezes não programada ou manifesta, mas que revela um outro real, “latente”.
A técnica nesse momento se alia à magia como diria Benjamin. À magia de fazer explodir em um relâmpago, em um flash, uma realidade - ou um “tempo histórico linear e vazio”, na terminologia Benjaminiana. Talvez esse ressurgir do real esteja em Bar azul. A imagem não serve para jornais, nem para álbuns de família. Não é índice imanente de um “fato”/“real”, e sim tem a capacidade de suscitar vários — sociais/ antropológicos.
Já se disse que a fotografia de Luiz Braga vai além, ou não está subjugada a esse propósito social e que igualmente ela recria a realidade esteticamente. Isso não está incorreto, mas é preciso lembrar que a possibilidade da fotografia está ligada a esse desraizar da realidade para nela se integrar de outro modo, através de outra forma.
A imagem de Bar azul é do fotógrafo. Deixa de ser quando se comunica com nossa tentativa de encontrar os vestígios do real, quando esses vestígios são tomados como um instantâneo. Talvez se os carros estivessem parados e não parecessem como relâmpagos não teríamos a mesma noção ou “eficácia” simbólica da imagem, talvez se eles não se contrastassem com a quietude da mulher na janela e com a “fisiognomia” da infância cambaleante não poderíamos fazer tantas ilações. Eis a representação mágica da realidade que a técnica pode proporcionar.
“Evidentemente - diz Luiz Braga - que meus personagens não vivem no paraíso. Mas estão em paz com o seu ambiente. É minha intenção assumir em relação a meus personagens a mesma naturalidade com que sou tratado por eles” [3]. Paz e naturalidade poderiam ser os adjetivos mais perceptíveis em Bar azul. Aí entra o leitor da imagem, que por ser imagem “aberta” lhe sugere polissemias. Não contente com o que ela mostra gostaria de saber o que aquela mulher estava pensando naquele momento, como foi seu dia? Será que espera algo, ou será que apenas olha, gasta o tempo?
Benjamin louva o surrealismo e mais especificamente a fotografia de Atget porque “nessas obras, a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação ao seu mundo ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda a intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores[4]”.
A alienação de Luiz Braga se assemelha a esse procedimento. As imagens de Atget renunciam aos lugares características da cidade, lugares tão visitados pelo olhar do turista; olhar que, em muitos momentos, paira sobre a Amazônia, o olhar de quem apenas passa. A fotografia de Braga tenta escapar desse olhar quando “ressignifica” a paisagem da região. O bar azul não é o Teatro da Paz e mesmo ao lado do teatro podemos ter vários bares azuis. Essa é a reorganização estética que por vezes surpreende mesmo os nativos, que, em geral, já possuem a “atrofia” no olhar.
Daí um certo caminho a ser percorrido entre olhar a imagem como conhecimento referencial, imediato, típico do jornalismo, dos cartões postais e do retrato e olhar a imagem do Bar que parece conduzir ao reconhecimento da paisagem[5]. A banalidade da cena se desfaz quando a câmera entra. O real se formaliza com a presença da luz que lança seu artifício para ressignificá-lo.
Os vestígios do real fazem parte dessas indagações, da possibilidade de reorganizar algo, que sabemos impossível, que pode surgir de uma imagem, de um relâmpago como um flash, do tempo agora (Jetzeit). Ou no instante da foto no qual a criança se move para tentar se equilibrar, o que provoca um efeito na imagem. Efeito artificial que sempre apagamos das fotos porque “chamuscam”[6] a imagem com o real. É exatamente isso que não pode ser apagado de Bar azul.
[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. 7 ed. São Paulo: Brasilense, 1994, p. 91-107.
[2] BENJAMIN, 1994, p. 94.
[3] BRAGA, Luiz. Uma Amazônia intimista. Disponível em: http://www.luizbraga.fot.br . Acesso em: 10 dez. 2007.
[4] BENJAMIN, 1994, p. 102.
[5] Ver a nota 4 do texto: Retrato, imagem, fisiognomia: Walter Benjamin e a fotografia. In: CHAVES, Ernani. No limiar do moderno: estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém: Paka-Tatu, 2003.
[6] BENJAMIN, 1994, p. 94.
Bibliografia consultada:
LISSOVSKY, Maurício. Sob o signo do “clic”: fotografia e história em Walter Benjamin. In: BIANCO, Bela Feldman; LEITE, Mirian L. Moreira (Orgs). Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas-SP: Papirus, 1998.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Uma versão deste texto foi publicada em Relivaldo Pinho
Postado por Relivaldo Pinho
Em
11/3/2016 às 05h27
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