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Sexta-feira,
11/3/2016
O Velho Inválido que cruzará o Atlântico
Heberti Rodrigo
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Não é no estado de harmonia de um organismo que nos deparamos com as peculiaridades de suas partes constituintes. É quando algo não vai conforme o esperado, nos conflitos, nas manifestações de dor, na exposição a elementos alérgenos que nos apercebemos dos limites de sensibilidade, das potencialidades e das fragilidades de nossos corpos que antes ignorávamos. É quando um órgão não funciona conforme o esperado que melhor compreendemos sua função e importância. De modo análogo, mais facilmente nos damos conta de nossa individualidade, do que há de singular em nossas vidas e destinos, quando nos sentimos em desarmonia com o ambiente que nos circunda. Isso, o Velho, que viveu uma infância ditosa entre os seus, não sabia; isso, o Velho, embora velho, só viria a descobrir anos mais tarde ao ser diagnosticado como inválido pelos doutores.
Subir três degraus de cinco foi o melhor que o Velho pôde fazer. Se bem que não fosse o suficiente, mais ele não pôde. Algo no Velho não ia como era de se esperar. Ele não conseguia embarcar. Não conseguia ir além daqueles três degraus e não soube explicar a si mesmo as causas do malogro. Pensava poder embarcar como seus companheiros, mas não pôde. Quis, então, entender por que, sendo também um homem capaz, não conseguiu seguir com eles. O Velho quis uma justificativa, pois uma justificativa, se não resolvesse seu problema, ao menos poderia dar-lhe uma chance de descobrir contra o quê estava a opor-se. O Velho recusou-se a aceitar o diagnóstico de invalidez que lhe imputaram os doutos. O Velho, embora velho, obstinou-se em encontrar, então, a sua própria justificativa, e em busca dela mergulhou em si mesmo; fechou-se em si mesmo como uma ostra, e como uma ostra ferida começou a produzir suas próprias perolas: sua literatura.
O Velho sentia que algo poderoso em seu íntimo o detinha no embarque, mas não sabia dizer em que consistia este algo. Sentia-se especial por haver em si essa coisa poderosa e inominável que o diferenciava, mas sentia também que por conta disso, todos lhe veriam a partir de então como um estranho inválido ou coisa pior. Ele que sempre fora tido como um homem de valor passou a ser visto ora como um fracassado, ora como um vagabundo que vive à custa de sua mulher. E isso tudo aconteceu justamente no momento em que começava a entrever algo de extraordinário em sua vida e futuro. O Velho não sabia o que pensar de si mesmo e de sua estranha situação. Sentia-se angustiado e enraivecido como se, de repente, desaparecesse alguém que amamos sem deixar notícias. Vivia, então, o desespero de não conseguir prosseguir sua vida por desconhecer se esse alguém estava vivo ou morto. O Velho precisava de respostas, precisava saber por que ele era diferente para que pudesse dar um rumo a si mesmo; precisava encontrar sua própria explicação, pois, como disse, recusou-se a aceitar o diagnóstico de invalidez outorgado pelos doutores. O Velho precisava afastar os fantasmas, precisava enterrar os mortos. Não poderia prosseguir sem compreender o que lhe acontecera. Sentia necessidade de entender a si próprio, pois sem isso, continuaria indefeso. Sem conseguir compreender sua vida, teria de se submeter a viver à base de remédios e de sessões de análise com os doutos. Jamais se resignaria a essa idéia. Sem compreender a si próprio, o Velho teria de se sujeitar a ter sua vida controlada por eles, e isso para ele é pior do que a morte, é uma vida não vivida. O Velho, embora velho e inválido, não aceita rédeas. O Velho, embora velho e angustiado, não aceita receitas de como viver. O Velho, embora velho e inválido, vai erguer-se e caminhar por conta própria, a despeito de todos os prognósticos contrários.
Há momentos em que sente dores terríveis, mas compreendeu que são essas mesmas dores que o ajudarão a erguer-se e caminhar sem o auxílio de muletas. Sem dor, o Velho não se erguerá. Sem dor, não produz suas pérolas. Sem dor, não há a grande literatura. Se a despeito do incômodo das dores e demais dificuldades não faz uso de coletivos para avançar, é porque o Velho, embora velho e inválido, não abre mão de caminhar com suas próprias pernas ao invés de servir-se da comodidade e agilidade oferecida pelos coletivos aos que preferem levar suas vidas segundo as receitas prescritas pelos doutos. O Velho não permitirá que sua musculatura atrofie. Também não faz uso de analgésicos porque não consente que embruteçam sua sensibilidade. Não lhe importa o quanto isso exija de si mesmo, não lhe importa o quanto isso lhe tome de tempo, o Velho não pode viver em coletivos, o Velho não pode viver entorpecido.
O Velho garante que se reerguerá. Provará ser capaz de fazer o que os doutores disseram que ele não seria. O Velho, embora velho, irá longe. O Velho, embora velho e inválido, atravessará por si mesmo um oceano de dificuldades. O Velho nasceu para se superar. Nasceu para produzir suas valiosas pérolas. O Velho não nasceu para viver como toda a gente do povo. Não nasceu para viver como um douto, exibindo-se com bijuterias como se fossem pérolas autênticas. Por isso, a todos aqueles que não são capazes de discernir o verdadeiro do falso, o Velho assemelha-se a um pobre inválido, mas não nos deixemos enganar: se bem que em alguns momentos se sinta inválido, não o é, e aquilo que o impediu de embarcar num coletivo, o cerne de sua aparente pobreza e invalidez, a dizer, sua vocação, provará o que estou a lhes afirmar. O Velho, embora velho e inválido, não nasceu para viver entre aposentados e inválidos. Apesar de ter nascido num país de resignados, jamais se resignou. O Velho teima em resistir. O Velho teima em persistir. Talvez tenha nascido aqui para mostrar a nós, brasileiros, que um velho, embora brasileiro, pobre, sem títulos e inválido, pode cruzar o Atlântico. O Velho nasceu para viver entre reis e rainhas, e é para lá que toda essa revolta e teimosia o encaminham.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
11/3/2016 às 18h39
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