A Filosofia do Velho | O Equilibrista

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Sábado, 12/3/2016
A Filosofia do Velho
Heberti Rodrigo
+ de 1000 Acessos

"Autodidata é um ignorante por conta própria", Mário Quintana


O Velho, embora velho e sem diplomas, foi além do nível ordinário. Conquanto nos cursos oficiais não tenha ido além do segundo grau, encontra-se à frente de muitos mestres e doutores. Embora velho e não reconhecido por um canudo envolto em folhas de flandres, é também um filósofo, e sua filosofia vai muito além de uma simples tese acadêmica.

O Velho inquieta-se com a abordagem do problema do ser. Para ser mais preciso, não se preocupa com a questão do ser em geral. Não é inclinado a esse tipo de masturbação acadêmica que, como ele próprio diz, é filosofar em terceira pessoa. O Velho não filosofa em terceira pessoa porque para ele filosofar em terceira pessoa é uma forma de alienar-se, um vulgar entretenimento; significa distanciar a filosofia de um homem de sua própria vida. "Se não é capaz de gozar com seus próprios pensamentos, não se masturbe com os de terceiros", diz aos pedantes. No entendimento do Velho, filosofar em terceira pessoa é o mesmo que escrever sobre o que não experimentou por si mesmo, ou seja, literatura de tonto.

Como ia dizendo, o Velho preocupa-se, sobretudo, com a questão do seu ser. Sim, o Velho, além de velho, é egocêntrico, como lhe diz a Menina. O Velho pensa no outro na medida em que pensa em si mesmo, filosofa na medida em que a filosofia pode abrir-lhe uma via de acesso para si próprio. Interpretar por si mesmo o seu modo de ser é o que o Velho considera como o seu trabalho. O Velho não entende o trabalho apenas como um meio de ganhar a vida, como se passa na mente de toda a gente ordinária. Isso, ao Velho, é acomodar-se ao mundo tal como lhe apresentaram, fazendo a concessão de aceitar o que lhe ofereceram, e ele não está disposto a fazer tal concessão. O Velho quer ir além, contestando, criando. Acredita que concessões são o que fazem as pessoas ordinárias, os escravos modernos, para os quais o trabalho é meramente a outra face do consumo. A vida como mercadoria. Vende-se aqui, compra-se acolá.

O Velho quer vencer sem concessões e, para isso, sabe que bravatas de nada adiantam. Sabe que precisa desenvolver a musculatura de seu cérebro. O Velho, embora velho, não quer ter uma mente oca e atrofiada como um ovário seco. O Velho não quer tomar como seu o filho de terceiros: quer criar os seus próprios. Por isso, exercita-se e se sujeita aos sacrifícios e às dores de quem quer liberdade para desenvolver-se. Por isso, filosofa. Por isso, escreve. Sim, o Velho poderia ter se matriculado numa academia, mas não quer fazer os mesmos exercícios de toda a gente que pensa e escreve sob a orientação de doutos. Quer liberdade para pensar. Não quer estar preso a esta ou àquela escola. O Velho não quer ser um acadêmico. Não quer fingir que se exercita. Não quer fingir que pensa. Que se entenda de uma vez por todas: o Velho não quer ser um doutor em filosofia. O que quer é desenvolver um pensamento próprio. Por isso, não se contenta com a filosofia de que viver resume-se a “nunca questionar ou desobedecer”. Foi o que tentaram lhe inculcar a vida inteira, mas isso o Velho considera uma degeneração do problema essencial da filosofia que torna o conceito do ser vazio e trivial como a cabeça das pessoas que aderem a essa maneira de viver. Jamais conseguiu aceitar isso e, por não ter aceito essa tosca resposta ao que seria a questão fundamental de sua vida, se mantém distante das academias e treina por conta própria.

Longe das academias, precisou descobrir por onde começar, e como nada tinha a analisar senão sua própria vida, colocou-se a si mesmo como ponto de partida de suas reflexões. Pensa que o caminho que o levará a si mesmo, ao seu ser, evidentemente terá de passar pelo homem que hoje é, como também pelo o que foi. Quando escreve, o Velho persegue a si mesmo ao mesmo tempo em que traça seu próprio caminho. Vive, então, a interrogar a si próprio e a quem convive com ele, como é o caso da Menina. O Velho, embora velho, continua a fazer aquelas perguntas que as crianças fazem e tanto desconcertam e incomodam os adultos. Suas dúvidas e perguntas incomodam a Menina a ponto de em alguns momentos ela dizer que envenenam sua vida. É possível que seja verdade. Se o Velho não se questionasse tanto, não criaria tantos problemas para si próprio. Não teria dificuldades em aderir à filosofia do “nunca questionar ou desobedecer” e seria feliz na medida em que são felizes as pessoas que possuem cérebros atrofiados e caducos e que, justamente por isso, não tardam a encontrar uma ocupação irrelevante na vida e se darem por satisfeitas com ela, coisa que o Velho, por ser como é, até hoje não conseguiu.

Seja como for, o que o Velho, embora velho, pode fazer se sua mente é como a de uma criança e está em pleno processo de desenvolvimento? Sim, ele não tem mais idade para ser um menino, mas seu cérebro é ainda o de um menino. Talvez por isso faça tantas perguntas inconvenientes. Talvez por isso seja tão egocêntrico. Talvez por isso seus gestos e palavras sejam permeados de uma espontaneidade inoportuna. Talvez, por isso, e, sobretudo por isso, o Velho tenha uma dificuldade incomum em lidar com o real e precise da Menina para ajudá-lo.


Postado por Heberti Rodrigo
Em 12/3/2016 às 18h14

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