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Quinta-feira,
14/4/2016
Reconhecimento
Heberti Rodrigo
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Retrato de Jeanne Hébuterne, Amedeo Modigliani
Ele tencionava embelezar o quadro e tão convencido estava de que alcançaria um efeito mais agradável suprimindo o que distinguia como “pecadilhos”, que não deu ouvidos às objeções da retratada aos retoques. Suas explicações não a dissuadiram. Ela não abria mão da autenticidade. Nem mesmo depois da exposição na qual a tela arrebatou aplausos à crítica e ao grande público, ela cedeu. À obra foram dedicados entusiásticos elogios pelas revistas especializadas, e o pintor começou a receber generosas propostas pelos seus trabalhos anteriores. Diante de tanto reconhecimento, ele rejubilava-se consigo mesmo. Estava satisfeitíssimo. Ela, no entanto, não disfarçava a expressão de contrariedade que aflorava em seu semblante sempre que a felicitavam.
- Esta não sou eu! dizia ao pintor enquanto era instada a posar ao lado da tela.
- Não é o que importa neste momento, ele retorquia furtivamente. Veja por si mesma: o quadro é um sucesso.
- Mas não sou eu! Admito que possa ser um sucesso aos olhos de todos, mas em relação a mim mesma é um fracasso. Sinto que todo esse reconhecimento que nos dedicam tem um brilho hipócrita e insincero. Ele não é meu! Esta não sou eu!
- Isso não vem ao caso, senhorita.
- E o quê vem ao caso, cavalheiro?
- O que importa é que está magnífico e a todos agradou. Como pintor, superei-me, e estou felicíssimo. Já executei inúmeros retratos, mas nenhum outro obteve semelhante êxito. É uma obra-prima. Olhe derredor! As mulheres a invejam, pois os homens a cobiçam. Não compreendo toda essa insatisfação. Ademais, perdoe-me a sinceridade, mas acho que se a pintasse como me pede seríamos negligenciados. O que fiz foi prestar-lhe um tributo enaltecendo o que há de belo na senhora e dissimulando os pecadilhos. Deveria estar grata. Creio que jamais esteve tão exuberante, perfeita.
- Pode ser, mas não lhe pagarei enquanto não pintar algo com o qual eu me reconheça plenamente sempre que fitá-lo.
- Neste caso a senhorita há de me desculpar, mas não creio que possa fazê-lo.
- Como não!? Disseram-me que é o mais talentoso de nossos retratistas.
- E sou, mas o que me pede é-me vedado executar. Tal quadro só a senhora poderá pintá-lo e, de antemão, previno-a: exigir-lhe-á anos de dedicação sem que ao menos tenha qualquer garantia de que chegará a alcançar o efeito desejado. Qualquer pintor que nisso se aventurar, senão a senhorita, fracassará porque para ele a senhorita servirá apenas como modelo, e pintar tal obra exige mais do que isso. De um modelo, um artista apenas é capaz de apresentar sua interpretação subjetiva, de modo que no retrato sempre haverá algo da alma do artista que pintá-lo. Ele poderá minimizar os retoques, mas não eliminar suas próprias impressões. Por conseguinte, a identificação que deseja entre a pintura e o modelo exige que este e o pintor sejam a mesma pessoa. Compreende o que isso significa? Terá de fazer o seu autorretrato. Inevitavelmente, há de dedicar todo o seu tempo e energia numa vida de angústias e lutas interiores até alcançar uma linguagem própria de cores e tonalidades através das quais expressará o que a senhorita tem de mais íntimo. Está mesmo disposta a isso? Não prefere tomar como seu este retrato, assinado por um pintor consagrado, e que em todos despertou inveja e admiração, a arriscar-se ao fracasso de revelar uma Anita que pode jamais vir a ser reconhecida?
Postado por Heberti Rodrigo
Em
14/4/2016 às 15h06
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