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Sábado,
16/4/2016
O Vendedor de Livros
Heberti Rodrigo
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Icaro, Henri Matisse
"Todo mundo tem um talento. O que é raro é a coragem de seguir o talento para o lugar escuro onde ele leva."
Erica Jong
Quando a campainha tocou, eu estava apoiado sobre a escrivaninha tentando escrever. Confesso que me senti aliviado ao ouvi-la. Não conseguia trabalhar e, como não conseguia, começava a me preocupar com as contas a pagar. Além disso, tornava a me questionar sobre o que as pessoas enaltecem como talento ou vocação sem que tenham experimentado o real significado dessas palavras em suas próprias vidas. É comum esse tipo de pensamento ocupar minha cabeça quando estou sentado à escrivaninha e me deparo com a dificuldade de escrever.
Ao abrir a porta, foi como se o meu passado estivesse diante de mim. Há alguns anos fazia o que aquele homem estava fazendo. Um dia resolvi não vender mais porra nenhuma do que me empurravam os livreiros. Por quê? Dizia que vendia porque precisava de dinheiro. Era mentira. É certo que eu não tinha um centavo para o almoço do dia seguinte, mas não estava mais tão convicto de que pela mera necessidade de dinheiro valia a pena bater à porta dos outros, tentando convencê-los da importância de ter em casa livros que nem ao menos considerava dignos de serem lidos.
“Por que o senhor está vendendo seus livros?” - perguntou-me certa vez um menino que abriu a porta para mim, com a maior inocência. Respondi-lhe o que qualquer um diria em meu lugar: “Preciso ganhar a vida.”. Ele, então, encarou-me como se o que eu lhe tivesse dito não fizesse sentido. A seguir, disparou “Quanto custa cada livro?” A partir daquele instante, de um modo que não sei explicar, comecei a sentir-me encurralado, feito gado metido num curral à espera do momento do abate.
“Quanto custa cada livro? Quantos preciso vender para ganhar a vida?”, questionei-me pela primeira vez, pouco depois de o menino fechar a porta, enquanto aguardava o elevador. Todo aquele processo automatizado em que até então consistia a minha vida começou a ser desfeito com estas perguntas. Habituei-me a tal ponto a repetir aos outros as meias-verdades que me foram ensinadas, enquanto ocupava-me com o cumprimento de minha meta de venda, que irrefletidamente comecei eu próprio a acreditar nelas. Nas semanas seguintes, não pensava noutra coisa, e fui tornando-me incapaz de vender tais livros. Sentia imenso desconforto a cada venda concluída. Não entendia o que estava acontecendo comigo. Questionava tudo à minha volta, revoltava-me contra o mundo, sentia raiva de tudo e de todos. Meus dias iam se tornando cada vez mais difíceis. Todas as manhãs, ao acordar, me faltava ânimo para sair da cama. O que antes era absolutamente natural, agora exigia de mim um esforço sobre-humano para ser executado. Tudo parecia ter-se tornado estúpido, oneroso e sem sentido. A realidade é que precisava de dinheiro, mas eu não queria, não podia mais viver daquele modo. “Quanto ainda terei de vender para ganhar a vida?”, repetia constantemente. Não mais me sentia capaz de seguir em frente com as vendas e, mesmo quando conseguia reunir forças para encarar um dia de trabalho, era impossível sair de casa sem lastimar-me: “Não estou ganhando a vida; estou vendendo-a por uma ninharia”.
Começou a parecer-me mais razoável dar um fim àquela situação do que seguir esperando a morte de uma maneira tão deplorável e covarde. Foi o que fiz. Decidi não me sujeitar mais a uma rotina tão maquinal, de respostas impensadas. Talvez tenha sido esta minha recusa em continuar a fazer parte desse automatismo teatral a que todos se habituaram a chamar de “vida” que tenha feito de mim o que sou hoje. Se tornasse a vender livros novamente, que fossem os livros que eu viesse a escrever. Pouco depois, de fato, pus-me a escrever. Não apenas por dinheiro, mas, sobretudo, para viver a minha vida de um modo que fizesse sentido para mim.
Assim que me despedi do vendedor, sentei-me novamente à escrivaninha. Sua visita reafirmou minha convicção de que, a despeito das dificuldades que enfrento, não posso voltar atrás. Se quiser ganhar a vida, tenho que escrever. Agora, quando me perguntam se ter me tornado escritor é consequência de uma vocação ou talento, ainda hoje não me sinto capaz de assegurar coisa alguma. O que tenho para mim é que quando alguém toma uma decisão como a minha, não se pode justificá-la simplesmente evocando essas palavras. Acho que há algo mais.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
16/4/2016 às 10h50
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