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Sábado,
16/4/2016
Morro de medo de morrer
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
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A moça à minha frente na fila do cinema carrega nas costas uma enorme tatuagem de águia. Coisa bonita de se ver, as asas abertas num tom que escapa do branco até o negro, adornada por ligeiros realces cinza, os olhos vermelhos, o enorme bico dourado, resultando num excelente trabalho artístico. De repente, um estranho vento frio soprou no meu rosto, como se fosse um aviso, uma espécie de lembrete, que aquela imagem tentava me lembrar alguma coisa, mas que na hora não consegui identificar. Eu já quis fazer tatuagem, mas foi maior o medo da dor, o risco de ficar feio e não poder apagar. Detesto sentir medo, mas sinto. Tenho medo de dentista, de cachorro brabo, da solidão, de ratos, de raios, da enxurrada da chuva que pode me arrastar, medos pequenos se comparados ao medo de morrer, que é o maior de todos os medos. Minha mãe tinha um sono letárgico, o mesmo que eu tenho agora, ligeiro, mas pesado. Quando criança, eu passava longos minutos observando ela dormir, com medo que parasse de respirar. Dizem que choramos ao nascer porque naquele exato instante nos damos conta da existência, e sentimos pela primeira vez o gosto do ar, que provoca dor nos pulmões. Então, apavorados, percebemos o mundo vivo em volta e o primeiro pensamento que nos ocorre é que um dia aquele suspiro terá fim. Num dia de frio tardio de setembro, um senhor, sempre muito calado e inacessível, que vivia perambulando pelas ruas do Guanandi, apareceu morto, deitado na calçada, ao lado de uma garrafa de cachaça; os olhos abertos, mas sem vida, um sorriso estranho no rosto, como se no último instante, quando a vida lhe escapava, os raros bons momentos pelas quais passou durante a vida errante, desfilassem diante dele. Foi o primeiro morto que vi. Meu cachorro Ringo morreu logo depois. Jogamos seu corpo sem vida num trilheiro de mata perto de casa e eu ia lá todos os dias para ver se algum milagre acontecia, na esperança de criança que ele de repente voltasse a viver, vez que dentro da minha cabeça, permanecia vivo o eco dos seus latidos, já me acostumando com o cheiro da carniça e nem ligando para a decomposição do corpo magro, que antes era cheio de vida e que todos os dias latia de felicidades só de me ver. E ao lembrar disso, recordei que a imagem que me lembrava a tatuagem nas costas da garota na fila do cinema, vinha de um pássaro que devorava a carcaça do meu cachorro. Não era uma águia como na tatuagem da moça, talvez um carcará ou algo assim, mas a sua figura majestosa, das garras afiadas que escorregavam na carne podre do meu cachorro morto e o som que escapava de seu bico afiado, ficaram guardadas num canto da minha memória para nunca mais sair, tal e qual a Beatriz de Dante, linda e majestosa, mas apavorantemente medonha. Mais de quarenta anos tem essa imagem. A moça da tatuagem sumiu pela larga porta de entrada do cinema, levando consigo aquela imagem que deixou em mim um cheiro de fim, de morte, de coisas ruins, que logo tratei de abortar, permitindo em troca me deixar invadir por um avassalador sentimento de morrer de vontade de viver.
Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
Em
16/4/2016 às 13h14
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