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Sexta-feira,
22/4/2016
Mãos Sujas
Heberti Rodrigo
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by Marcel Caram
"Eu não me desfaria da minha doença, pois há muita coisa em minha arte que devo a ela." Edvard Munch
As vivências de um homem se encadeiam umas às outras numa tal velocidade que poucas vezes ele chega a se tornar consciente de seus estados interiores. Muitos de meus dias transcorrem sendo plenamente absorvidos pelos afazeres cotidianos, pelas preocupações e distrações comuns a um homem casado e pai de um filho. Se há instantes em que é necessário um pouco mais de dedicação e paciência, comumente eles se sucedem sem sobressaltos. São horas vividas sem reflexões ou inquietações mais profundas em que minha vida em si mesma se justifica, inconscientemente se organiza e se ajusta ao ambiente em que vivo. Maquinalmente se vive. De tempos em tempos, entretanto, um sentimento se impõe e tudo se desorganiza. Outrora, quando ainda não o compreendia, lastimava-o. Hoje o aceito, e aceitá-lo significa silenciar e escrever. Está presente em minha vida como o espaço vazio deixado pela ausência de dentes na catraca de uma bicicleta, fazendo com que vez ou outra a corrente saia, interrompendo o movimento que possibilita ao ciclista manter o equilíbrio. Nestes momentos de instabilidade em que sinto a minha vida se desorganizar, distancio-me dos outros. Escrever é uma tentativa de reorganizar-me, de reaproximar-me. Impõe solidão. Exige que eu desça da bicicleta e suje minhas mãos recolocando a corrente em seu lugar para poder seguir em frente. É com as mãos sujas que tomo consciência da singularidade de minha existência. É com as mãos sujas que escrevo. A personalidade de um homem é constituida de muita coisa desagradável, de "defeitos" sem os quais se torna impossível viver. Viver é sujar-se de si mesmo. Sentindo-me à margem, estou entregue à minha sujeira, revirando conflitos íntimos enquanto uma pergunta me angustia: serei capaz de reestruturar-me, de reabilitar-me, através de uma linguagem que comunique o que se passa comigo? O sentimento de vazio, a sensação de desajuste em relação ao ambiente em que vivo e a incerteza de saber se conseguirei comunicar-me e suavizar meu isolamento precedem minha escrita. Jamais escrevo se me sinto plenamente ajustado. Somente comecei a sentir necessidade de escrever após ter tomado consciência da dor de estar só no mundo, descobrindo-me como criatura única e separada. Não escreveria se viver não doesse. Aceitar tudo isso foi muito difícil - toda separação é dolorosa -, mas não posso me furtar aos momentos de solidão, às situações limites e às ocasiões em que tenho de sujar as mãos para seguir traçando meu próprio caminho. Foram essas vivências que fizeram de mim o artista que sou e artista nenhum pode prescindir do que o faz ser ele mesmo se quiser avançar.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
22/4/2016 às 15h05
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