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Domingo,
1/5/2016
A Sala Vazia
Heberti Rodrigo
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After de Chirico, John Hultberg
Le silence éternal de ces espaces infini méffrace.
- Blaise Pascal, Pensées, iii, 206.
That space of the scientists... Their lenses are so thick that seen through them the space gets more and more melancholy. There seems to be no end to the misery of scientists’ space. All that it contains is billions of hunks of matter, hot or cold, floating around in the darkness according to a great design of aimlessness.
-Willem de Kooning
Naquele dia, não precisei bater à porta: encontrei-a aberta. Logo ao entrar notei que ela havia retirado os móveis da sala, inclusive os quadros das paredes e os livros da estante. Manteve apenas a velha poltrona em que escrevia, embora a arrastasse de um canto a outro, inquieta. Aquela cena me intrigou e, absorta como estava, decidi não perturbá-la. Permaneci observando, em silêncio. Tão atraído pelo que fazia me senti que esqueci de mim mesmo e do conto que havia escrito e sobre o qual gostaria de ouvir sua opinião. A expressividade de seus gestos e semblante era-me de uma beleza comovente. Talvez para qualquer outro aquela cena representasse apenas uma dona de casa ocupada com uma faxina de rotina. Uma dona de casa e mais nada. Mais nada? Não, havia algo mais ali, e eu era capaz de sentir, pressentir. Ela não estava arrumando a sala. Ela buscava, e essa busca se manifestava na inquietação de seus gestos e feições, na insatisfação com que empurrava a poltrona. O que poderia haver numa sala vazia? O que um olhar precipitado não revelaria, mas, no silêncio em que mergulhara, pude entrever, é que justamente por estar vazia as possibilidades tornavam-se maiores. A própria sala tornava-se maior. Tudo era levado a uma dimensão impensada. Qualquer um é capaz de reconhecer um ambiente vazio, mas intuir e investigar o que há ou poderá tornar-se aquele vazio não é dado a toda gente. Ela se permitia a liberdade de experimentá-lo, questioná-lo, vivenciá-lo, sobretudo quando escrevia. Diziam que era corajosa, mas não era coragem. Era paixão. Paixão pelo incomum que emergia em seus textos a partir deste vazio que às suas palavras transmite significação e vida. Ela trabalhava o vazio. Ela se reconstruía a partir d’Ele. Certa vez, confidenciou-me que somente conseguia escrever quando se sentia cansada de si mesma e que era justamente nesses acessos de insatisfação e tédio consigo própria que irrompia sua necessidade de “silenciar-se e desadaptar-se”. Naquela ocasião, não a compreendi. Somente depois de vê-la arrastar sua poltrona tornei-me capaz de apreender o sentido de suas palavras e o motivo de ela ter sido duramente criticada como inclassificável e hermética. O que tinha a comunicar era expresso, sobretudo, no intervalo entre uma palavra e outra, no não-dito. As palavras serviam-lhe de moldura, limitavam; o vazio, libertava e, devido a essa liberdade, a essa abertura para novas possibilidades de releituras que dali surgiam, injustamente chamavam-na de hermética. Esse pensamento ocorreu-me quando, em meu silêncio, observei-a também em seu silêncio. Tudo se passou espontaneamente, instintivamente. Daquele dia em diante, não precisei perguntar-lhe coisa alguma ou fazer qualquer esforço para alcançar sua obra. Lê-la é como ler numa outra língua: só é possível quando não estamos indiferentes, quando estamos familiarizados. Ela tem uma língua própria. Todo grande escritor tem sua própria língua. É preciso estar sensivel a ela para que a obra se revele. Foi o que ocorreu naquele dia e creio que, por isso, encontrei sua porta aberta.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
1/5/2016 às 12h42
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