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Quinta-feira,
12/5/2016
No bar do Ivo, abraço é moeda
Marco Garcia
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O bar do Ivo fica numa privilegiada rua de Fortaleza. Entre as avenidas Beira-Mar e Abolição. De suas mesas é possível ver a igreja e o cemitério do Mucuripe.
E não é apenas a localização, a clientela também reúne bons predicados.
Empresários, advogados, políticos, militares, escritores, músicos, atores, jornalistas, professores, universitários, reis de camarotes, dentre outras personalidades da sociedade abastada, aliviam os fardos diários no tradicional estabelecimento.
Trata-se de um ambiente simples, mas considerado um achado, mesmo estando 26 anos à margem do eixo preferido da crítica da noite fortalezense.
Ele não figura em guias turísticos, mas abastece o esquenta da galera.
"Graças ao meu bom Deus", diz Ivo, sempre que um frequentador descobre o lugar e comenta sobre o nível intelectual e social de quem bebe por lá.
Mas, como um bom boteco que se preze, o local é também parada obrigatória de transeuntes de ocasião.
Os, digamos, menos afortunados, sem os 15 diplomas por parede, patentes e avantajadas contas bancárias.
São cozinheiros, garçons, manobristas e seguranças do restaurante de bacana que fica duas quadras dali; funcionários dos inúmeros hotéis da orla - que param para uma branquinha ou uma gelada pós-expediente.
Flanelinhas; carroceiros; pipoqueiros; vendedores de milho; engraxates (isso mesmo, engraxates), e muitos personagens anônimos que chegam e, "dá licença aqui, patrão", escoram-se no balcão e sorvem, talvez, a única companhia do estômago do dia.
Sábado à tarde, um desses invisíveis ébrios, vestindo bermuda e camiseta surradas, descalço, cabelo com uma mistura de óleo e água, com feridas em dos joelhos, já sem dentes, sentado, pernas cruzadas, rabiscava numa folha e olhava para o senhor da cadeira a sua frente.
O caricaturava.
Dez minutos depois, obra pronta, o rosto do moço, que afirmara ser natural de Tatuí, interior de São Paulo, estampava, desenhado em traços firmes, a folha branca.
"São dez reais", cobrou o profissional do pincel.
"Mas eu não pedi pra você me desenhar", retrucou um já alterado etílico senhor, para espanto dos presentes, que acompanharam a negociação prévia entre ambos.
"Olha, não quero ser injusto, tenho apenas quatro reais".
"São dez reais", recusou-se a receber quantia inferior.
"Toma de volta o desenho e usa o verso em nova caricatura".
"Não. O desenho é seu, apenas me dê o combinado".
"Rapaz, pague o homem. Serviço desse não é menos de 30 reais na Beira-Mar", gritou o cliente da mesa ao fundo.
"Mas eu não pedi o retrato. Pago uma dose".
"Em cachaça não recebo, tenho dois filhos e uma mulher brava. Quero os dez reais".
"Deixa que eu pago. Você não vai ficar no prejuízo", prometeu o bigodudo que estava escorado na mureta, querendo amenizar os ânimos exaltados.
Abriu a carteira, tirou a nota e pagou o surpreendente artista anônimo.
"Ei, já que tudo se resolveu, me dê um abraço e considere o afago como parte do pagamento", disse o autor do calote.
O desenhista recebeu o abraço, não o retribuiu, e saiu de lá com semblante resignado.
Quem sabe lamentando sua condição de excluído, que até então não tivera uma oportunidade sequer para demonstrar suas habilidades artísticas.
*Marco Garcia é jornalista paulistano. Mora em Fortaleza.
Postado por Marco Garcia
Em
12/5/2016 às 12h04
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