Na serra, anoitece mais cedo. Eu estava ali para curar minha dor, tentar cobrir a perda com o reboco do esquecimento. Todos os dias, fazia o mesmo trajeto: saía do hotelzinho, na verdade uma casa térrea com vários cômodos e um toldo comprido na entrada, descia a Avenida Alberto Braune e a Praça Getúlio Vargas, desembocando na Praça do Suspiro, onde a vista do teleférico e da torre de igrejinha, projetada pelo grande Lúcio Costa, ornava a encosta verdejante. Ia tomar a mesma média diária com pão e manteiga na confeitaria da esquina da Rua General Osório, em frente a um casarão abandonado no meio de um amplo quintal cujos canteiros eram devorados pelo mato. Mergulhava o pão na xícara do café com leite como fazia em criança, ainda ouvindo os ecos da recriminação materna, não faça isso, menino, que é falta de educação! E às vezes me perguntava se de lá onde ela se encontra agora, não estaria repetindo essas palavras que me chegavam articuladas em tempo presente.
Desconheço se é assim com todo mundo, mas sou movido pelo passado. Lembrei-me de uns versos da época em que ainda escrevia poemas:
Moramos no passado
e a roupa do presente
nós vestimos.
Um descompasso
entre o passo de fora
e o de dentro.
Um é espaço
o outro é puro tempo.
Seria isto?
Bem que eu gostaria de viver as coisas de outra maneira, mas que fazer se afinal, como escreveu Fernando Pessoa, cada um cumpre o destino que lhe cumpre. Tenho dúvida se é esta exatamente a frase dele, mas não tenho o livro dele à mão.
Na verdade, quando muito, cheguei a roubar-lhe um beijo. Mas foi uma coisa tão forte que até hoje seu gosto de flor permanece em meus lábios. Chamava-se Dália. Não sei como é o perfume da dália-flor. Só sei de Dália o que com ela se foi. Então bati numa Olivetti portátil estes antigos versos de Cassiano Ricardo: Merecias viver porque eras pura / rosa de um mundo que devia ser teu / porém o mundo não te mereceu /. Os versos estavam lá na parte de cima do espelho do banheiro onde pelas manhãs me barbeava, no apartamento de quarto e sala que aluguei para temporada, numa ruela do Grajaú. Como a memória não me inspira confiança, saí à procura do livro do poeta e finalmente encontrei, em meio à mixórdia de uma pilha de livros que trouxe comigo, a 1ª edição de suas Obras Completas, publicada pela Livraria José Olympio Editora em 1957, onde se lê o Soneto Anônimo cujo último terceto transcrevi.
Até hoje se ignoram as circunstâncias do desaparecimento de Dália. Chegou-se mesmo a cogitar de sequestro ou de rapto, mas como tudo se passou numa época em que esses crimes não frequentavam o vocabulário quotidiano nem a crônica policial, a hipótese foi deixada de lado.
Dela não tenho sequer uma foto. Uma vez tentei descrever para um pintor o seu retrato falado, mas o resultado do esboço saiu tão distante da imagem que eu tinha na memória, que acabei desistindo. É muito duro você perceber que está perdendo aos poucos a lembrança da figura amada. No tempo em que esses fatos sucederam, não existia ainda a internet e nem mesmo o fax... Fotografia só se tirava para fazer carteira. Em preto e branco, tamanho 3x4. As coloridas vieram bem depois.
Dália gostava de livros e de plantas. Lia Cronin com assiduidade. Eu achava graça.
Você está rindo de quê?, ela me perguntava com aquele jeito todo seu, as duas covinhas gêmeas se entremostrando junto com o sorriso.
De nada, ora!
Não seja cínico. Você nunca soube mentir. (Bem que gostaria de dizer-lhe que achava aqueles romances um tanto adocicados para o meu gosto mas isso equivaleria a confessar que havia lido Cronin, e eu não ia dar o braço a torcer).
Dália era uma loura esguia, de olhos azuis e pele muito clara. Tinha uma pintinha acima dos lábios, no lado esquerdo. Eu a achava singularmente bela, sobretudo quando usava rabo de cavalo.
Muitos anos depois, passando por um cinema do shopping serrano, vi o cartaz de um filme policial que evocava seu nome. Quase comprei o ingresso para a sessão que estava prestes a começar.
Vagando outra tarde pelo bairro do Cônego, descobri numa velha loja de artigos diversos e, dentro de um móvel envidraçado, uma coleção original, de capa vermelha, das aventuras de Sherlock Holmes e me detive mergulhado em devaneios tresloucados. E se eu utilizasse as técnicas do famoso detetive britânico para decifrar o misterioso desaparecimento de Dália mais de quarenta anos depois?
Ela se fora sem nenhum aviso. Recordo que uns dez dias após o seu sumiço, fui até a casa onde ela morava com o pai, em Laranjeiras. Bati à porta daquela casa singela sem quintal e um senhor envelhecido me atendeu de pijama. Sua fisionomia desfeita atestava o golpe sofrido. Quando me declarei colega de sua filha, o homem me abraçou, não contendo as lágrimas. Constrangido, aguentei firme, fazendo um tremendo esforço para não chorar também. Depois de refeito, o senhor idoso desculpou-se pelo momento de fraqueza, mas nada soube dizer sobre o paradeiro da filha. Era um pobre viúvo que vivera com a filha única e agora só lhe restava um gato siamês, muda testemunha daquela cena que presenciara refestelado numa poltrona, fixando-me com o olhar hipnótico dos gatos.
Ela saiu normalmente para trabalhar e não voltou mais, disse ele com a voz embargada. Despedi-me em seguida, deixando, dentro da lata de lixo em frente à porta da rua, os restos das primeiras esperanças.
Naquela altura, o peso da perda de Dália ainda não me atingira em toda plenitude. Talvez ela tivesse viajado, perdido a memória ou coisa assim. Agarrado a esse resquício de esperança, eu contava nos dedos os dias de sua ausência, com a sensação de que estava afundando aos poucos nas areias movediças da depressão, até que não me segurei mais e liguei para seu pai, não conseguindo adiar por mais tempo a resposta que temia receber. Do outro lado da linha, ele me disse, num tom grave, que já percorrera os hospitais da cidade, mas nenhuma mulher parecida com a fotografia que mostrara a médicos e enfermeiros fora internada em qualquer deles. Chegara até a ir ao necrotério, acrescentou cheio de horror.
Para onde teria ido, foi pergunta que o velho me fez, mas permaneci em silêncio. Poderia, pensei, estar numa infinidade de lugares: numa praia do Norte ou do Nordeste, no estado de São Paulo ou mesmo em Minas Gerais, ou talvez perdida na floresta da Tijuca, ela que amava tanto as plantas. Viajar para o exterior, seria quase impossível com o seu salário minguado de secretária. Custava-me admitir que já estivesse sob a terra ou mesmo debaixo d’água...
Hoje, passadas mais de quatro décadas, essas indagações ainda me perturbam. Não a sei se viva ou morta. Quem sabe até seja uma avó feliz, cercada pelo carinho dos netos por todos os lados. Todavia esse happy end não cabe no meu roteiro, mais propenso ao realismo cru dos livros e filmes noir. Também não sei se fui correspondido em meu amor. Mas afinal o que vem a ser o amor: uma dádiva ou uma dúvida? Ainda hoje, relembro uma imagem virtual de sua reação àquele beijo único que lhe dei — o que me parece até ser estranho, pois o seu rosto me vai fugindo a cada dia — mas, como dizia, não sei se sua reação foi de surpresa, de espanto ou de secreto prazer. Ela apenas baixou os olhos, dissimulando um sorriso. Estaria achando graça de mim porque, mesmo naquele tempo, beijar como quem furta, cheio de medo, já estava fora de moda? Talvez ela apenas aceitasse minha companhia por comodismo. E por feminina vaidade. Nunca ouvi de seus lábios palavra alguma que insinuasse o tipo de afeto que sentia por mim. Esta é outra pergunta sem resposta.
A ausência de Dália preencheu de vazio minha vida. Não me casei, não deixo descendência. Sigo abraçado à sua saudade. Recolho-me à tardinha quando começa a anoitecer e a friagem desanda a apertar, penetrando os ossos. No inverno da serra, o frio chega mais cedo.
Ayrton Pereira da Silva