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Quinta-feira,
26/5/2016
Quando nos tornamos únicos.
Heberti Rodrigo
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Cena de Tempos Modernos
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"Não me parecia possível que eu tivesse passado quase cinco anos a serviço daquela empresa sem coração. Compreendi como os soldados deviam sentir-se ao darem baixa do exército.
- Livre! Livre! Livre!
Em vez de entrar imediatamente no metrô, subi a Broadway caminhando, só para ver qual era a sensação de ser dono de mim mesmo, sem compromissos, àquela hora da manhã. Os pobres trabalhadores, lá iam eles correndo para seus empregos, todos com aquele ar triste e alarmado que eu conhecia tão bem. Alguns já corriam pelas ruas, esperando, mesmo naquela hora adiantada, receber uma encomenda, vender uma apólice de seguro, ou pôr um anúncio. Como parecia estúpida, sem sentido, idiota aquela corrida de ratos. Sempre me parecera louca, mas agora também me parecia diabólica.
Caminhei algum tempo sem destino, só pelo prazer de saborear minha liberdade recém-adquirida; sentia um prazer perverso de ficar vendo os escravos cumprindo as tarefas que lhes foram atribuídas. Eu tinha toda uma vida pela frente. Dali a poucos meses iria completar trinta e três anos de idade - e seria "meu próprio senhor absoluto". Ali mesmo, e naquela hora, jurei que nunca mais haveria de trabalhar para ninguém. Nunca mais obedeceria ordens. O trabalho a ser feito no mundo era para os cretinos - eu preferia ficar de fora. Tinha talento e iria cultivá-lo. Ou me tornaria escritor ou morreria de fome."
Trecho de Plexus, de Henry Miller
Os anos de aquartelamento foram marcados pela repressão de minha individualidade e origem da mais intensa crise de minha vida. Ao envergar uma farda, despi-me de minha liberdade de folguedos e da alegria de aprender por conta própria, segundo o tempo de minhas inclinações naturais, para me enquadrar ao severo regulamento militar que contrariava minha natureza. Toda a insistência em me adequar àquele cotidiano, todas as punições a que fui submetido, e como um terrível ácido dissolveu a personalidade de muitos de meus colegas, findaram por fortalecer-me ao desencadear em mim uma forte aversão ao chamado mundo real. Pouco antes de ser expulso, eu já decidira não apenas não me tornar um militar, mas também não me enquadrar a nada que me levasse a violentar qualquer uma de minhas vocações ou necessidades mais íntimas. Escrever é uma delas. Foi a minha própria natureza, o meu destino, que assim determinaram, e nossa natureza, amigos, é coisa à qual homem nenhum pode contrariar. Quando os portões do quartel se fecharam às minhas costas, eu não sabia que caminho seguir, mas já tinha a firme convicção de que não seria aquele pelo qual envereda o homem comum. Naquela ocasião pude novamente sentir a alma ser banhada pelo sol matinal que dá novo ânimo a um condenado em seu primeiro dia de liberdade, após anos de desterro num presídio. Num momento de minha vida em que tudo o que eu tinha eram meu amor-próprio ferido, minhas paixões e desilusões, eu sentia aquela imprecisa melancolia do homem que havia se extraviado do mundo. Esse inexorável sentimento de ruptura com a realidade na qual meus amigos seguiam com suas vidas, crepúsculo de minha primeira infância, foi decisivo no desenvolvimento de uma personalidade que se fechou em si mesma com suas dúvidas, anseios e ambições para, na solidão, dedicar-se à sua verdadeira formação, uma formação que lhe dará músculos mais fortes para encetar um caminho que apenas se abre pelas mãos de um homem de gênio.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
26/5/2016 às 14h09
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