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Quarta-feira,
1/6/2016
A Gestação
Heberti Rodrigo
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Hang On, by Lukasz Królak
Não se desespere, nem sequer pelo facto de não se desesperar. Quando já tudo parece ter acabado, novas forças surgem em marcha, e isso significa precisamente que está vivo. E se não vierem, então acabou tudo por aqui e de uma vez para sempre. Diário, Kafka
Há quem subestimará este breve relato julgando não passar de devaneio e loucura de alguém com o qual acredite não ter nada em comum. Há também os que não se aterão à questão de sua universalidade, limitando-se apenas a reconhecer na decisão de não permanecer acuado um gesto isolado de coragem. A bem dizer, após tantos anos, ele próprio não sabe o que pensar. Nem mesmo sabe dizer se conscientemente tomou alguma decisão porque, se o fez, é-lhe impreciso afirmar até que ponto ela não teria se dado de maneira instintiva, meramente motivada pelas circunstâncias. Assim, se lhe dizem ter demonstrado coragem ou loucura, de imediato objeta terem sido as de um homem preso no sexto andar de um edifício em chamas. Até o último momento asseguraria não saber qual seria o desenlace daquela situação, entretanto, passado alguns anos tem a impressão de, na verdade, ter hesitado em reconhecê-lo, como se preferisse o martírio de um sufocamento à volúpia de um salto no vazio. Foi-lhe terrível deparar-se com toda a extensão da impotência de um homem diante da vida, mas o que realmente o intimidou, foi sentir pesar sobre si a responsabilidade de descobrir um modo de enfrentar a angústia suscitada por uma situação que fugia ao seu controle. Mergulhado em incertezas, pressentia, no recrudescimento de seu desassossego, que se avizinhava do fim. Não atinou, mas era a aproximação da vida - e não de seu desfecho - que o aterrorizava. Enquanto os gritos oriundos de outras salas ecoavam pelos corredores, esforçava-se em organizar, racionalizar os fatos, sentimentos e pensamentos que o levaram até ali, como se buscasse uma justificativa, qualquer coisa que lhe oferecesse consolo e alento para lidar com sua condição. Em vão esquadrinhou perspectivas, acabando sempre por reconhecer nos limites de cada uma delas os mesmos limites de sua razão. Esperava que sua inteligência fosse capaz de socorrê-lo - e até então dela se serviu com algum êxito - a encontrar outras posições dentro da realidade admitida no interior daquelas paredes, mas tal realidade já se esgotara, revelando a falibilidade da razão. Sempre cabe em qualquer um de nós certa insatisfação, e vamos mudando de posição, procurando acomodá-la da melhor forma possível, segundo nossas possibilidades. Era o que vinha fazendo. É como age um homem antes de deparar-se com seu limite; e agora que se encontrava diante dele, talvez por desespero ou apenas por força do hábito, tentou uma última vez abrir a porta, mas ao tocar a maçaneta o calor advertiu-o que o incêndio havia tomado todo o andar. “É o fim”, pensou, com a testa recostada na porta e em prantos quando reconheceu, na incerteza de um futuro que se abria à suas costas, sua única saída e, no fim de suas possibilidades, seu desespero converteu-se em novas forças. Levado por um legítimo impulso de vida, uma veemente urgência de viver, arremessou sua cadeira à janela para, num só tempo, encher os pulmões de ar e este de gritos como uma criança ao deixar o útero materno. Sentiu que precisamente isso se chama viver, interpretando, anos depois, toda sua vida até ali como uma longa gestação. Assim lhe ficaram marcadas na alma as cicatrizes daquele incêndio; e, se bem que a despeito do que viveu, ainda hoje não acredite em milagres, nem saiba mais da vida do que sempre soube, sabe que ela seria inconcebível se eles não existissem.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
1/6/2016 às 14h40
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