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Domingo,
12/6/2016
Inferno em digestão em Terra sonâmbula
Renato Alessandro dos Santos
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"Aqui nadie se queda inmóvel. Mi pueblo es movimiento. Mi pátria es um camino." (Pablo Neruda)
"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem." (Bertolt Brecht)
Olhando para trás, lá se vão 24 anos. Terra sonâmbula, romance de Mia Couto, tem essa idade - praticamente o mesmo número de anos que sinalizam o fim da guerra civil de Moçambique, em 1992. Vida difícil a dos moçambicanos. Não bastasse a independência tardia (1975), encerrando a fase de guerra anticolonial, o país entrou em outra batalha, interna, a guerra civil que, de 1976 a 1992, deixou o chão e a vida esburacados. Luta necessária, amplamente mortífera, e que assinala um período em que um tardio império decadente não mais estenderia suas mãos para pilhar e para fazer sofrer aqueles que, além-mar, viram-se enredados numa máquina lusitana que perdeu a sincronia com a máquina do mundo. Duro é compreender que finda a luta pela independência, de 1965 a 1975, contra aqueles que vieram com a língua de fora, começaria outra contra aqueles que, do lado de dentro, não se compreendiam nação uma, surdos que estavam à diversidade de línguas que demarcam territórios e que expuseram uma cizânia, uma ferida que indicava que o ódio e a intolerância ainda tinham muito a dizer a Moçambique.
E a literatura, o que tinha ela a falar sobre tudo isso?
Uma boa resposta está em Terra sonâmbula, um dos 12 livros africanos mais admirados do século 20. “Nele”, afirma a professora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, “as estórias entrançadas constituem-se como uma rede poética que dá a resposta da literatura à crise político-social por que passa Moçambique”.
E que resposta! Política e literatura de mãos dadas, depois de levantadas do chão.
Primeiro, repleta de sinais de uma guerra recente, a estrada por onde passam dois personagens que levam o leitor travessia adentro. Os sinais: carros incendiados e retorcidos, pessoas mortas e carcomidas a servir de pasto a aves de rapina; sem comida, sem futuro, sem sonhos. A terra está sonâmbula.
Depois, esses personagens que, no romance, fazem a diferença e indicam o desenrolar do enredo. Dois. Um velho e um menino: Tuahir e Muidinga. Duas gerações a abrir a estrada para seguir adiante. A tradição e o porvir. O menino perdeu voz, dignidade, esperança, mas o velho ajuda-o a reencontrá-las, e partem, até porque não há outra coisa a fazer a não ser manter-se em movimento.
O machimbombo & a mala
Caminham os dois e, de repente, veem um machimbombo abandonado, uma espécie de micro-ônibus que servirá como uma âncora aos dois, âncora para regressar, âncora temporária a amortecer as agruras da estrada. Mas o que é aquilo ali? Ali está o que restou de um homem e, anexado a ele, uma mala. É preciso enterrar o corpo, e eles assim o fazem; é preciso ver o que há dentro daquela velha mala e, ao abri-la, o que o menino encontra são onze cadernos, escritos por Kindzu, terceiro personagem que, fugitivo também, será uma espécie de bálsamo para a travessia de Tuahir e Muidinga, porque nesses apontamentos os dois encontrarão o sonho que parece inexistir na terra sonâmbula.
E vai assim, um livro dentro do outro, em abismo. Muidinga descobre que sabe ler, algo que julgava perdido, e, levantando a voz, narra para Tuahir, cego para as miçangas das letras, a biografia misteriosa de Kindzu, cuja vida também é marcada pelo movimento pícaro da estrada e pelas investigações oníricas que engendra.
Kindzu é filho de um pescador, o velho Taímo. O pai não compreende que o filho tem de ir embora de sua terra, e o menino não entende o porquê da ojeriza do patriarca. Conflito de gerações, conflito marcado por duas visões contrastantes: o filho acredita que a resposta está lá fora, enquanto o pai não o perdoa por fugir e escapar de onde nascera. Eis o sal da terra. Kindzu parte, bem como o pai, que resolve ir para o além-mar que separa o mundo dos vivos e dos mortos. Longe de casa, o rapaz espera encontrar os naparamas, guerreiros que estão mais para lá do que pra cá, isto é, que têm lá seu quinhão no mundos dos mortos e, por isso, representam a tradição de heróis que podem recuperar a grandeza da terra para seu povo.
Parte Kindzu, e seu pai, vez ou outra, surge para lhe iluminar ou apagar o caminho, pois o velho - no mundo dos mortos - ainda não o perdoou. E estrada afora, o passado do país é reaceso pela voz do filho, que, estrada adentro, reencontra ancestrais capazes de resgatar o fio da memória tão severamente obliterado pela assimilação lusitana, isto é, pela borracha que os portugueses esforçaram-se em usar a fim de apagar a memória popular. Assim, emergem estórias capazes de ilustrar a cisão entre o mundo real e o mundo dos sonhos, espelhados pela narração em primeira pessoa de Kindzu e contrastados pela terceira pessoa do narrador, que apresenta a realidade em ruínas, em carcaças, em destroços que povoam a estrada de Muadinga e Tuahir.
É essa voz de Kindzu que resgata o saber africano dos anciãos, bem como a identidade perdida durante o processo de colonização português. Em seus cadernos, a poesia resgata os laços do passado, trazendo ao encontro do leitor a memória do tempo perdido: o canto do galo mimético e independente de Vinticinco de Junho, ou Junho ou Junhito; a perseguição de Nhamataca por rios, à espera de vê-los brotar da terra; as velhas em transe que em busca de gafanhotos parecem ecoar um canto ranzinza de cigarras; o velho português Romão Pinto e sua esposa, a africana Virgínia, personagens que carregam no nome o fardo da colonização; a mulher que em busca do filho ocupa a carcaça de um velho navio ancorado, repleto de mantimentos que apodrecem à revelia de uma população faminta... Essas e outras estórias são costuradas por Kindzu, enquanto do outro lado do espelho os dois personagens servem-se delas como aqueles que, na oração, encontram força para escapulir de uma vida rasteira e seca.
É assim, nesse diálogo entre o passado e o presente, entre o imaginário e a realidade, que Terra sonâmbula encontra, por meio da literatura, o caminho por onde os moçambicanos têm de seguir adiante, estrada afora, vida adentro, como um metrônomo que regressa ao passado para, no presente, seguir como o rio que vai engolindo tudo pela frente, a despeito das margens que o oprimem.
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ilustração de HELTON SOUTO
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RENATO ALESSANDRO DOS SANTOS, 44, é professor no curso de Letras do Centro Universitário Moura Lacerda e no Colégio COC-Batatais. Fez doutorado em estudos literários na UNESP, de Araraquara, e é autor de Mercado de pulgas (Multifoco), da dissertação A revolução das mochilas e da tese Romances rebeldes — a tradição de rebeldia na literatura norte-americana: de Moby Dick a On the Road. É editor deste sítio: TERTÚLIA. Contato: [email protected]; Facebook: Renato dos Santos Santos.
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HELTON SOUTO nasceu em 76. Ribeirão Preto. Casado com Silvana. Cientista social, educador, gerente de projetos na área de educação e juventude, artista plástico e ilustrador. Desenha e pinta desde sempre. Torce para o São Paulo. E seu cachorro se chama Yoda. Blog: Andar na pedra. Contato (Facebook): Helton Souto.
Postado por Renato Alessandro dos Santos
Em
12/6/2016 às 14h12
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