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Sábado,
2/7/2016
A Neve
Heberti Rodrigo
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Modigliani
“Eu odeio todo mundo, sinto horror a mim mesma e não posso mais suportar a vida” foi o último registro de Anita em seu diário, momentos antes de deixar o Bistrô des Artistes, onde havia conseguido expor parte de sua obra. Naquela noite, como nas anteriores, pouco interesse despertou suas telas. Ao sair, não tinha um destino em mente. Foi sem dar por si que seus passos levaram-na àquela ruela estreita e sem saída. Estava tão fria e impassível quanto uma mulher que não acredita mais em sua própria beleza. No semblante de toda a gente que cruzava seu caminho, revia as mesmas feições pálidas e o mesmo olhar inexpressivo tantas vezes retratado em seus quadros. Não queria viver a mesma vida daquelas pessoas, mas não encontrava meios de se relacionar com a sua própria. Apenas quando pintava ela e a vida se conciliavam. Nessas ocasiões, sentia-se como que arremessada para além de seus conflitos, para além de si mesma. Expressos em tons e cores e estilo próprios, tais conflitos pareciam-lhe ter sido sobrepujados. Eram esses momentos, por assim dizer, seus instantes de serenidade, e força. Nos últimos tempos, no entanto, não conseguia pintar e, como não conseguia, tudo à sua volta foi se lhe afigurando cada vez mais intolerável, opressor e sem sentido. Ao longo do caminho, passou diante de incontáveis casas de pequenas janelas retangulares, resguardadas por grades, todas muito parecidas umas com as outras. Tão parecidas que nem as habituais conversas de fim de noite de seus moradores lhe permitiam diferenciar esta daquela. “É sempre a mesma coisa”, pensava, quando, ao fim da rua, a singularidade da arquitetura e o silêncio que emanava de uma edificação atraiu-a. O contraste entre esta e as casas pelas quais passara perturbou-a. Anita estava diante da catedral. Aquele silêncio prenhe de significação fascinou-a. Por alguns minutos, permaneceu no umbral, sensibilizada. Desde a morte da mãe não pisava numa igreja, e naquele momento algo em seu intimo a impelia a entrar. Ao cruzar o umbral, persignou-se, instintivamente. Surpreendeu-se ao notar que, conquanto algumas das estátuas dos santos refletissem confusamente a luz das velas e outras, muito altas, pareciam-lhe estranhamente irreais, não se sentia uma estranha ali: algo lhe sugeria uma doce familiaridade. Dentre os vultos ajoelhados à sua frente, ergueu-se uma religiosa que caminhou em sua direção e indicou-lhe um lugar para sentar. Cansada, Anita anuiu, e a religiosa sentou-se ao seu lado. Seu semblante sereno, perfeitamente sereno, não exprimia inquietação alguma. Entre seus dedos um terço reluzia como um fio de prata. Sua companhia suscitou em Anita a doce lembrança de sua mãe. Comovida, deixou-se tocar: deitou a cabeça no colo daquela mulher e sentiu suas mãos afagarem seus cabelos, de leve, afetuosamente. A seguir, sem que palavra alguma fosse pronunciada, confiou-lhe seu diário como se estivesse a entregar-lhe a própria vida e adormeceu.
Do lado de fora, recomeçara a nevar, e pouco a pouco a neve ia encobrindo os últimos passos de Anita.
Postado por Heberti Rodrigo
Em
2/7/2016 às 12h42
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