Em seus últimos momentos, Juan de la Concepción Joaquin Esteban Fradique de Urtiaga carregava o peso de um enorme desgosto pela vida fracassada, agravado pelo tamanho sem fim de um nome de batismo pomposo que servira de mote inesgotável de piadas maldosas por parte dos conhecidos.
Consta da tradição oral que suas derradeiras palavras foram: “caralho, a porra desse nome não caberia nem na lápide que não vou ter.”
De fato, foi com um sentimento de alívio que se livraram do defunto, encontrado no pântano, já em adiantado estado de decomposição, mas surpreendentemente intacto, sem ter sido abocanhado sequer pelos crocodilos que infestavam aquelas águas pútridas nos confins da aldeota, com apetite insaciável.
Como ninguém reclamou o corpo e não houve vivalma disposta a velar o morto ou acompanhá-lo ao domicílio final, até porque o fedor que exalava era insuportável, foi enterrado num caixote improvisado de madeira de entulho que lhe arranjaram às pressas, pelo temor de que, se fosse para a cova rasa embrulhado num lençol velho, resolvesse voltar para assombrar os viventes.
A verdade, porém, é que Juan de Urtiaga, depois de morto, angariou um prestígio que jamais tivera em vida, sendo invocado, de início, nos terreiros e congás, como uma entidade de temíveis poderes, que levaram à loucura alguns médiuns desavisados que ousaram incorporá-lo e acabaram se atirando de um penhasco para o abismo sem fundo que delimitava um dos extremos do povoado, numa espécie de reprise do episódio bíblico da vara de porcos endemoninhados que, desatinados, se lançaram de um despenhadeiro para a morte.
De sorte que nas preces e exortações que lhe dirigiam com pedidos de luz para sua alma atormentada, seu nome de batismo deixou de ser declinado, passando a ser respeitosamente designado como o Guardião das Águas Paradas, de quem esperavam as benesses de seus misteriosos prodígios.
Nascera órfão de pai ignorado e mãe anônima que o depositara, como nos clichês dos folhetins antigos, na calada de uma noite tormentosa de inverno, defronte à porta da igrejinha do povoado de Urtiaga, um lugarejo sem registro no mapa, formado por um arruamento de modestas casas de porta e janela e pelo prédio maltratado da prefeitura que também abrigava, nos fundos, a dependência policial com sua única cela, onde os poucos bêbados do lugar curtiam sua ressaca. Esse vilarejo esquecido de Deus limitava-se de um lado pela escarpa pedregosa de vegetação rasteira e plantas venenosas e de outro por um pântano de fétidos miasmas deletérios.
O recém-nascido e futuro Juan de la Concepción Joaquin Esteban Fradique de Urtiaga foi recolhido de manhã pelo pároco da aldeia, de quem se dizia que fora, certa vez, visto com um halo de santidade pairando sobre sua cabeça, durante a procissão do dia da Ascensão do Senhor.
Quanto ao nome que recebera na pia batismal, as opiniões se dividiam entre aqueles que acreditavam tratar-se de um ato piedoso do padre ao atribuir ao enjeitado apelidos de família escolhidos entre aqueles com fumaças de nobreza, enquanto outros, com extrema malícia, achavam que a escolha do padre fora motivada por pura ironia.
Seguindo o destino dos enjeitados, Juan de Urtiaga fora coroinha em menino e sacristão quando trocara as calças curtas de zuarte pelas calças compridas de um tamanho maior, com fundilhos de coar café, arrepanhadas entre as sobras de um bazar de caridade.
─ Ô joão-ninguém do sino, já coou o café do vigário hoje? – motejavam os colegas do colégio público onde aprendera as primeiras letras.
Ele calava diante das piadas e dos insultos de mulher do padre, até que seus olhos, sem que ninguém reparasse, começaram a mudar de cor, adquirindo um aspecto estranho. Então, acontecimentos inusitados se desencadearam, quebrando a rotina movimentada do recreio quando o valentão da turma, depois de provocar Juan de Urtiaga até arrancar gargalhadas e gracejos do resto dos meninos, de repente cagou-se e mijou-se todo, como se tivesse visto algo aterrador em plena luz do dia, empestando o pátio do colégio com uma fedentina tal que tiveram de suspender as aulas por três dias para lavagem de todo o prédio com litros e mais litros de água sanitária e soda cáustica até que o cheiro de merda desaparecesse.
A partir daí, ninguém mais se atreveu a mexer com Juan de Urtiaga, que passou a ser evitado, principalmente pelo valentão da turma que mudava de calçada para não cruzar como ele. Juan até se alegrou com esse isolamento, pois jamais se sentira à vontade na presença dos outros. E já nem pensava mais no assunto, quando começaram os sonhos premonitórios.
E foi assim que acordou em sobressalto, quase caindo do catre em que dormia no quarto de guardados da casa paroquial, por causa da visão clara de onde morava a mãe biológica que jamais conhecera e cujo nome e sobrenome ressoaram em seus ouvidos como um eco de palavras gritadas na nave de uma imensa catedral vazia.
Madrugada ainda, pôs-se a caminho, mastigando um pedaço pão dormido como desjejum, pois o trajeto a percorrer seria longo até chegar ao lugar onde, num casebre de pau-a-pique, morava uma anciã de melenas brancas que lhe caíam até a bainha de uma bata imunda e rota, que fedia como dez gambás.
─ A senhora é Doña Violante de la Anunciación de Roncesvalles – afirmou Juan de Urtiaga mais que perguntou, ante a figura espectral que assomara à porta do casebre, mal refeito da surpresa de haver pronunciado de cor o nome e o sobrenome, até aquele dia completamente ignorados, de sua mãe desnaturada, como se ele fosse um boneco de ventríloquo manipulado por uma entidade invisível.
─ Some daqui, emissário do Belzebu! Quem te mandou? Aposto que foi aquele padre de meia pataca que teima em não arder no fogo inferno. Sabe o que ele anda espalhando por aí? Que sou uma feiticeira. Tudo por inveja das curas das minhas ervas. Parece que tem medo da concorrência, pois as rezas dele só fazem efeito depois que o cristão entrega o corpo à terra.
Sem arredar pé diante dos vitupérios da anciã e debaixo de uma chuva de perdigotos saídos de sua boca desdentada, Juan com uma voz surdinosa sussurrou para a megera:
─ Sou seu filho, mãe.
Nem ele mesmo acreditou nas palavras que escaparam de seus lábios, e teve então a certeza de que definitivamente estava sendo manejado por alguma força alheia à sua própria vontade. Para dramatizar ainda mais aquele instante de absoluta perplexidade e espanto, a mãe, sem dizer palavra, cingiu-o em seus braços esqueléticos.
Juan, passando a viver com sua mãe biológica até então desconhecida, abandonou o ofício de sacristão, e só lhe deram pela falta quando, às seis horas da tarde, o sino do campanário não tocou as badaladas da Ave-Maria, e dizem que desde então grassou um tempo de adversidades que levou à ruína o que restava do povoado.
Sua mãe iniciou-o na arte hermética dos herbanários ancestrais, ensinando-lhe os segredos das ervas curativas dos males do corpo e do espírito e os arcanos proibidos das plantas de amavios e dos filtros de bem-querer e malquerer.
Aos poucos, foi-se operando uma metamorfose quase imperceptível em Juan de Urtiaga cujos olhos passaram a irradiar uma coloração iridescente de rara serenidade e harmonia, enquanto sua mãe rejuvenescia a olhos vistos, adquirindo o porte adelgaçado de uma matrona de traços senhoriais que nada tinha a ver com a aparência tosca do filho que gerara, fruto da imaturidade da adolescência, que mais parecia um boneco talhado a machado sem corte pelas mãos brutais de um lenhador e era a lembrança viva da insensatez que arruinara sua vida. Certa noite, sem nenhum aviso, deixou em silêncio o barraco do pântano, libertando-se para sempre da presença do filho que pela segunda vez renegava.
Foi desse modo, com toda crueldade e bruteza, que o destino golpeou-o mais uma vez, e Juan de la Concepción Joaquin Esteban Fradique de Urtiaga internou-se no pântano, passando a conviver com répteis, serpentes, batráquios, lacraus e toda espécie de animais repulsivos e peçonhentos que constituíam a fauna do pântano e aos quais alimentava com as aves que alvejava com seus olhos mutantes, em pleno voo, até caírem fulminadas.
Seus olhos adquiriram para sempre uma coloração de magma incandescente toda vez que alguma coisa o desgostava. Conta-se que ao morrer, quando suas pálpebras se cerraram, uma primavera súbita fez rebentar em flores o carrascal de cipós, ramagens cortantes como fio navalha e plantas bravas do pântano inóspito e indomável, mas quando, por efeito de um espasmo da musculatura facial, os olhos do defunto reabriram, todas as flores murcharam e nunca mais voltaram a brotar.
Segundo o relato dos moradores mais velhos do povoado, depois da morte de Juan de Urtiaga, insólitos acontecimentos subverteram a rotina do lugar, como a desorientação dos galos que passaram a cantar fora de hora e o delírio dos cães que uivavam nas noites de lua cheia até o raiar do dia, além do absoluto desgoverno das estações do ano, que não ocorriam na época devida, levando à ruína os agricultores que já não sabiam mais quando era chegado o tempo de semear nem o tempo de colher. Ninguém mais teve sossego diante dos desarranjos da natureza, como os aguaceiros torrenciais que, sem aviso, desabavam de um céu inteiramente azul ou das ondas sucessivas de calor seguidas de intenso frio, que ora tocavam as pessoas para a sombra das árvores e dos lugares frescos, ora as faziam tirar do fundo das gavetas velhos cobertores e grossos agasalhos com cheiro de naftalina. Esses descalabros acabaram por infundir o terror entre os nativos e quem podia mudou-se para outros pagos, fugindo da maldição que assombrou o lugarejo. Só permaneceram mesmo, por não terem para onde ir, uns poucos idosos, que assumiram o compromisso de dar testemunho do que ali ocorrera, dentre estes o pároco da igrejinha, que tinha se esquecido de morrer e, pelos registros do batistério, já estava próximo de completar cento e cinquenta anos de idade.
Ayrton Pereira da Silva