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Segunda-feira,
1/8/2016
Make a Wish
Heberti Rodrigo
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Anoitecia. Ao chegar do trabalho, refugiou-se no quarto. Não acendeu a luz. Não poderia. Vestindo um tailleur azul-marinho, espontaneamente desapareceu na escuridão, aliviada. Era como se não mais existisse. Na verdade jamais teria pensado assim, pois sempre lhe foi natural existir. Entretanto, se existia, era de maneira diluída, anulada entre os demais funcionários na repartição, em meio aos transeuntes na rua ou mesmo no apartamento que dividia com duas colegas. Opiniões corriqueiras e condescendentes, pensamentos e experiências ordinários eram tudo o que possuía e igualmente possuíam-na. Nisso consistia a estreita superfície sobre a qual sua existência ia se equilibrando. Martirizada por uma terrível enxaqueca, tateou os bolsos à procura de suas pílulas. Tomou duas quando uma bastaria. Talvez buscasse aplacar também os apelos de sua vida íntima. Lançavam-na num doloroso conflito: sentia necessidade de viver o que espontaneamente brotava de si mesma, individualizar-se, mas pressentia que ultrapassar os limites daquele ambiente em que se habituou a viver era-lhe o maior dos riscos. Temia desequilibrar-se. Ligou o rádio e deitou-se à espera de algo que viesse a distraí-la enquanto as pílulas não surtissem efeito. Em vão. Revivia suas lembranças de juventude, época em que sonhou mudar o mundo, e frustrou-se ao constatar que ele é o que é e não o que ela pensava que deveria ser. Anos depois imaginou-se escritora, casada e com filhos, mas para tudo lhe faltou encontrar seu jeito de se entregar. "Se tivesse dinheiro, deixaria esse emprego...", “Se pudesse ser outra, talvez...", devaneava. No fundo, tanto "se" outra coisa não refletia senão seu desejo de seguir vivendo à deriva das circunstâncias, dissipando-se interiormente. Outra pílula. Estava prestes a dormir quando lhe adveio o receio de tornar a sonhar e, ao acordar, ver que tudo continuaria como até então. Exausta, percebia que logo não mais aguentaria esperar que o acaso a levasse a uma decisão da qual ela própria se defendia. Essa espera desesperava-a, sufocava-a. Essa espera era sua vida. Levantou-se da cama e caminhou até a janela. Acendeu um cigarro e se pôs a olhar a rua. Por um momento, uma suave brisa acariciou-lhe o rosto. Contemplando o céu, notou uma estrela cadente. Seus olhos se encheram de lágrimas quando se lembrou que na infância se encantava ao avistá-las e, confiante nas palavras da mãe, fazia um pedido. Nenhum se tornou realidade. "Por quê?”, questionou-se num lampejo de raiva, que nunca antes se atrevera a manifestar, e baixou os olhos, resignada. Durante alguns minutos, permaneceu assim, em silêncio, apenas observando a movimentação dos pedestres e dos automóveis. “Dia após dia, levam suas vidas iludidos pela ideia de que a realização de seus sonhos depende apenas de suas próprias vontades; no entanto, quantas vezes contrariam-nas as circunstâncias?” falava para si própria, quando, num inusitado afluxo de forças, pela primeira vez sentiu-se encorajada a entregar-se plenamente; e, sem medo de se machucar, talvez por acreditar que tudo continuaria como sempre fora, desapareceu na negrura do asfalto e da multidão que por ali passava.
Contato: [email protected]
Postado por Heberti Rodrigo
Em
1/8/2016 às 07h51
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