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Quinta-feira,
1/9/2016
Fora de Forma
Heberti Rodrigo
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Na solidão, o solitário devora a si mesmo; Na multidão, devoram-no inúmeros. Então escolhe. Friederich Nietzsche
Amanhecia quando os últimos precipitaram-se pela escada. Seria natural supor que logo depois fizesse o mesmo. Ao longo de todos aqueles anos poucas vezes se ausentou, e sempre que isso ocorreu tinha uma boa justificativa. Nunca havia sido punido. Demorou-se ali porque sentiu vontade de ficar só antes de vestir a farda e entregar-se àqueles oito lances de escada que unem o alojamento e o pátio interno do quartel, onde se perfilaria ao lado dos demais cadetes para formatura matinal. Restavam pouco menos de cinco minutos, e não demonstrava inquietar-se com as consequências de um iminente atraso. O toque do corneteiro advertia; no entanto, portava-se como se não lhe dissesse respeito, permanecendo ensimesmado diante da janela do banheiro a observar o mar. “É tão vasto que parece revelar algo maior que ele próprio”, murmurou, não sem alguma excitação, ao notar em suas águas o reflexo do sol que se erguia no horizonte. Chegava-lhe ainda, embora cada vez mais distante, o ruído surdo e cadenciado da batida dos coturnos de seus colegas no chão duro do pátio interno. “Estão entrando em forma. O chefe de turma terminou a contagem e deve estar comunicando minha falta ao tenente”. Sabia que caso se ausentasse, sem apresentar uma justificativa convincente, seria severamente punido. Ainda assim, não a tinha. Só a apresentará anos mais tarde. Até lá, seu comportamento será visto como uma estúpida afronta, como se motivado por uma rebeldia efêmera e infantil. Não era o que se passava. Era algo mais profundo e, por isso mesmo, difícil de alcançar e debelar. Tudo lhe sobrevinha com a intransigência própria do irremediável. Sua existência deixava de seguir como um toco em enchente para fixar-se num ponto distinto e imprevisto, à margem de tudo o que até então havia reconhecido como vida. A correnteza seguia, mas não ele. De onde se isolou, não sem um misto de melancolia e orgulho, contemplava a corrente pela qual seus colegas se deixavam levar. Houve quem, ao passar por ele, censurasse-lhe, amigavelmente, a demora, prevenindo-o de que seria punido e que o mais sensato seria entrar em forma imediatamente. Não lhes deu atenção. Não poderia. Não com aquele horizonte emergindo diante de si, sobre si, em si. Sentia-se envolvido, dominado por algo maior que ele próprio. Em sua solidão pressentia uma transformação indefinivelmente intensa a desvelar-se em seu destino. Aconteceu-lhe, ao contemplar o mar, o que anos depois nomearia “sentir-se ser”, uma irresistível e perturbadora maneira de ver a si mesmo tomando parte no mundo e, ao mesmo tempo, ausente dele; a sensação de estar a se desviar e a se perder para vivenciar as angústias e alegrias inerentes a um tortuoso processo de redescobrir-se. Tudo ressurgia sob uma perspectiva nova. Minutos antes, parecia-lhe evidente pensar que, naquele instante, era ele, e não seus colegas, quem estava a fazer nada, apático. Ao acontecer-lhe de “sentir-se ser”, principiou a lançar um olhar singular sobre os acontecimentos, não raro interpretando-os como que pelo avesso: “são eles, e não eu, que permanecem passivos”. Não fazer nada passou a significar, dali em diante, uniformizar-se, deixando-se levar pelo mesmo impulso que arrasta todos à sua volta.
Contato: [email protected]
Postado por Heberti Rodrigo
Em
1/9/2016 às 14h58
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