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Sábado,
3/9/2016
Tesouras
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
+ de 1000 Acessos
Útil, neste apressado tempo da manhã,
com esta de aros azuis (guardada na cozinha)
desfaço a geometria da caixa de leite
à primeira refeição do dia.
Com a outra, pequena e delicada,
aparo as unhas e o fio de linha
que insiste em saltar da barra da saia.
Aquela, um pouquinho maior,
liberta-me da mecha de cabelo
a esconder-me os olhos na fotografia.
Hábil, manobrando a maior de todas
(de ferro polido), com ares de quem salva
dos Sete Pecados Capitais a humanidade
e com pretensões de salvar o mundo do desvario,
podo no canteiro as ervas daninhas.
Ia me esquecendo, existe uma tesoura
de flores. Com pétalas e aromas,
sua lâmina renova-me das noites
de insônia. Com pétalas e aromas,
cultivo o lilás das glicínias que,
na jarra do quarto, contemplo
em natureza imaginária.
Com aquela, que era de minha avó,
polimento de cor grafite, eu dei à morte forma,
e vestes à consolação, esculpindo em casa
o manto dos primeiros mortos, nas malhas
do linho costurado à mão.
Mas para esta, pontas redondas,
cor e brilho da prata, à medida das cirandas
e brinquedos, desenhei bailados
para pernas de aço. Desenhei naves
de jornal. Com suas lâminas
recortei, na seda do papel, cores
que me levam ao virtual azul inscrito
sobre o chão da sala de jantar
e sobre a terra que cobre
os que se foram.
Movendo a que se fez alavanca
insondável, eliminei círculos metafísicos
que se repetiam. E se repetiam. Por fim,
partejando o ventre da terra, escavei o infinito
para encontrar no corpo a beleza do incompleto.
Ou encontrar o acaso nas tarefas da vida
dividindo-se com a morte.
E a que se perdeu de tudo,
pelo invisível da matéria a ser decepada,
eu a escolhi de vidro. E denteada. De um só golpe
de dedos cortei danos e perdas. Mas descobri que
os caules da mágoa pegam de galho,
renascem nas águas da chuva e da torneira,
fincam pé e raízes nas tábuas do assoalho.
Perdida no tempo, tem ela ainda certa utilidade.
Entre lâminas translúcidas, meus fantasmas
prenunciam as horas de demora
encravadas nos dentes do arado.
E ganhei um dia uma tesoura de areia.
Cheiro de mar. Fragmentos de corais e abismos.
Amorfa, esta carrego na bolsa.
Com ela aprendi a ineficácia do corte
ante o afiado tempo do cio.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
3/9/2016 às 08h59
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