3
... e pois seguimos nós no mar brumoso
galgando ora montanhas liquefeitas
ou descaindo em socavões profundos
nesta casca de noz
escaler de papel
de velhas folhas de um jornal extinto
de um incerto dia onde se liam
em tipos garrafais
letras que agora não se leem mais.
5
porque a água em vagas salitradas
solapa letras sílabas palavras
a água lava apaga
mesmo a memória dos mais nefandos fastos
mas deixa um rasto enlutado
de borrão sépia
tinta de polvo
inventando ao acaso outro alfabeto.
6
esse mar de palavras revoltoso
é um mar de marés imprevisíveis
a que presidem lunações perversas
é um mar de profundas reticências
que volta e meia
circunflexo relampeja
e agudamente craseia.
9
essas palavras de mar viram oceano
são palavras demais
e aderem ao casco das naus
às quais retiram o sentimento das águas
o que é um risco
pois uma quilha sem corte
não enxerga
os perigos das sintaxes nas pedras
nem percebe
o cântico enganoso das semânticas.
13
semiótico enxergo claro o tempo
das palavras concretas em bom porto.
há de chegar o tempo, marinheiro,
de fundear o barco bonançoso.
“há de chegar o tempo
o tempo o tempo”...
repete a gaivota em pleno voo.
15
D. Giovanni:
“a esta hora os mortos retornam
à sua tumba de bravos marujos”.
era um crepúsculo
de brônzeos reflexos
um amarelo-magma
um ocre ígneo.
“não são de Deus esses marujos mortos
sem sepultura cristã”.
não são de Deus talvez
mas são de Posseidon.
... e esses peixes que devoram os olhos
dos náufragos são de Deus talvez?
ou essas aves que nada fazem
e mereceram citação supina?
D. Giovanni não responde, cala.
assim é ele: um velho marinheiro italiano
afeito às calmarias às bonanças
ao fogo de Santelmo e às borrascas.
18
um marinista melhor que um marinheiro
deve aos que chegam deixar esse registro
do cemitério naval onde carcaças jazem
as ossaturas de ferro velho expostas
à ferrugem do sal e à maresia.
num outro quadro a este justaposto
com essas mesmas tintas
misturadas de modo diferente
pinte-as de novo o marinista anônimo
para mostrar a todos que como Flebas
um dia essas carcaças foram belas.
21
...e no entanto esse mar emoldurado
pelas janelas francesas da varanda
é um mar sem magia, não espanta.
não é o mar de Homero
ou dos fenícios
é um mar sem história nem prestígios.
é um pedaço de mar
um mar urbano
exposto ao olhar profano dessas gentes
que desconhecem trirremes e tridentes
e só por isso não temem sua fúria
quando os tritões assopram as grossas nuvens
desatando os nós dos ventos e das chuvas.
Ayrton Pereira da Silva
(in Umbrais, Sette Letras, 1997)