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Domingo,
23/10/2016
A Ilha Desconhecida
Heberti Rodrigo
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"Quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou quando nela estiver" José Saramago
Não estava muito claro o que faria de minha vida quando abandonei a universidade. Somente depois de decorridos alguns meses em que estive completamente desorientado, descobri a escrita e, com ela, algo óbvio, embora nem sempre fácil de reconhecer, que para se encontrar, um homem há de se perder e, mais do que isso, precisa ter a humildade de admitir que se perdeu, ou que errou. Ao admitir que em algum momento me perdera, tornei a vivenciar sentimentos e sonhos que me acompanharam durante a infância e a adolescência, e pareciam-me terem ficado para trás. À medida que eles iam retornando, de um modo que ainda não sei explicar, ia me sentindo menos perdido. Era como se eu fosse me reencontrando comigo mesmo, com meu destino. Enquanto tudo isso acontecia, eu ganhava força, e recrudescia em mim a intuição de que em algum momento precisaria de dinheiro para ir além do ponto em que havia me perdido. Foi um tempo de recomeço, de reaprendizado, de preparação para tentar novamente. Intimamente sabia que uma hora chegaria novamente a este ponto. Sentia que ao atingi-lo teria de fazer uma aposta, tomar uma decisão incomum, e não poderia recuar ou protelá-la por muito tempo pelo simples medo de errar novamente ou pela dificuldade em relação ao dinheiro. Aliás, de modo algum, aceitaria que o dinheiro se tornasse uma desculpa para deixar de realizar o meu sonho. Não me esconderia atrás desta justificativa. Eu sabia que com um pouco de planejamento e sorte ele deixaria de representar um problema. Assim, ao longo de todos esses anos economizei sempre que pude, fazendo eu mesmo a limpeza da casa e com um orgulho terrível, semelhante ao descrito por Balzac em suas cartas, pouco tempo depois de sua chegada à Paris, em que dizia ter ele próprio de fazer a faxina em sua mansarda. Em 2012, quando respirei o ar de Paris pela primeira vez, fui tomado pela convicção de que era para lá que deveria voltar nos anos seguintes. Sem diplomas ou trabalho de carteira assinada, não imaginava como isso seria possível. Tinha que eu mesmo dar um jeito de encontrar como ir. Planejei e, com a ajuda da Namorada, tudo começa a se concretizar. Daqui em diante, sinto como se não dependesse mais de mim. É com o destino, com a vida. Não estou mais no controle, se é que se possa dizer que temos o controle sobre nossas próprias vidas. Quando se quer alargar os horizontes - e eu quero - temos de deixar a terra firme e nos atirarmos ao mar, às incertezas. É no mar que sentimos nossa pequenez, nossa insignificância, mas é também navegando em suas águas que descobrimos que o horizonte está um pouco mais além do que pensávamos, que podemos avançar mais do que acreditávamos que ser capazes. Se ficarmos em terra firme, levando nossas vidas como todos, não viveremos isso, e encolheremos. É navegando nossos próprios sonhos que grandes conquistas e descobertas pessoais se tornam reais, e, quando alcançamos uma delas, nos sentimos, também, maiores. Nossas vidas parecem se tornar maiores. A primeira das descobertas que fiz desde que aceitei as incertezas e dúvidas de ser quem sou, de desejar o que desejo, enfim, de viver como vivo foi a minha fé de que cedo ou tarde alcançarei meu destino. Com essa descoberta, descobri, também, que, às vezes, é preciso duvidar para se encontrar a própria fé. É preciso se perder para se encontrar, como disse. Quero mais descobertas. Quero ir à Paris. "Por quê?", perguntam-me. Porque busco na companhia de minha mulher e de nosso filho sentir que estou tornando minha vida maior. Quero dividir isso com eles, viver isso ao lado deles. Espero que bons ventos me levem a novas descobertas, a despeito do risco de tempestades e naufrágios. Viver também é isso: colocar a vida em risco para salvá-la, para não amesquinhá-la. Seja como for, estou pronto para navegar, para a vida, para perdas e reencontros, e é isto que responderei a todo aquele que me perguntar o que faremos em Paris. É um tanto vago, alguns dirão, no entanto, mais do que isso não posso dizer. Se insistirem em saber mais, direi que cabe a cada um descobrir por si mesmo o que tudo isto significa. O que significa viver? Que cada um procure a sua resposta. Que cada um procure a si mesmo e por si mesmo, se isso lhe for necessário. Para mim, é.
Segue um trecho lido ontem à noite, numa daquelas leituras ao acaso que tanto me surpreendem pela ligação com o que ando vivendo:
"Pedi demissão da IBM", diz.
"Que bom. O que vai fazer agora?"
"Não sei. Vou ficar ao léu um pouquinho, acho."
Ela espera ouvir mais, espera ouvir seus planos. Mas ele não tem mais nada a oferecer, nenhum plano, nenhuma idéia. Como é simplório. Por que uma garota como caroline se dá o trabalho de mantê-lo a reboque dela, uma garota que se aclimatou na Inglaterra, fez de sua vida um sucesso, que o passou para trás em todos os sentidos?
...não há despedida em seu último dia de trabalho. Ele esvazia sua mesa em silêncio, despede-se de seus colegas programadores. "O que você vai fazer?". pergunta um deles, com cautela. Evidentemente, todos ouviram a história da amizade; isso os deixa rígidos e incomodados. "Ah, vamos ver o que aparece", ele responde.
É um sentimento interessante, acordar na manhã seguinte sem ter de ir para nenhum lugar. Um dia de sol: pega o trem para Leicester Square, faz uma excursão pelas livrarias da Charing Cross Road. Está com a barba de um dia; resolveu deixar crescer a barba. Com uma barba talvez não pareça tão deslocado entre rapazes elegantes e garotas bonitas que saem das escolas de línguas e pegam o metrô. E que aconteça o que tiver de acontecer.
De agora em diante, decidiu, sempre vai se colocar no caminho do acaso. Os livros estão cheios de encontros casuais que levam ao romance - ao romance ou à tragédia. Está pronto para o romance, pronto até para a tragédia, pronto para qualquer coisa, de fato, contanto que seja consumido por isso e refeito. É por isso que está em Londres afinal: para se livrar do seu velho eu e se revelar em seu novo, verdadeiro, apaixonado eu; e agora não há impedimento à sua busca.
Paira no horizonte o problema do dinheiro. Suas economias não vão durar indefinidamente...Tudo o que pode fazer é esperar em prontidão o dia em que o acaso por fim lhe sorrir.
Trecho do livro Juventude, de J. M. Coetzee
Contato: [email protected]
Postado por Heberti Rodrigo
Em
23/10/2016 às 12h34
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