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Sábado,
24/12/2016
Noite feliz
Anchieta Rocha
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Quando cheguei, mamãe falava pra vizinha dos tempos difíceis após a mudança pra capital.
— Aconteceu numa noite de Natal, igual à de hoje, chuvosa também.
Me passou a garrafa de refrigerante.
— Foi duro criar os filhos. Com a morte do pai deles, tudo mudou. Nunca pensei que ia passar tanta penúria. Mal acabava de tirar a mesa, vinha o sofrimento por não saber o que tinha pra comer no dia seguinte. Numa manhã, a hora do almoço chegando, nem um fubá prum caldo, um tempero, nada. Saí pra não ver ninguém. Puxei a porta e joguei o xale no ombro. Fiquei dando volta no bairro esperando o tempo passar. Quando perdi as forças, entrei na igreja e fiquei até criar coragem pra voltar pra casa.
As moças arranjavam cada emprego, nem gosto de pensar. O mais velho era o mais preocupado por se sentir no lugar do pai. Mexia daqui e dali, chegava em casa com as mãos vazias. Os pequenos, o coração cortava. Traziam dinheiro da rua engraxando sapato, entregando marmita. Este aqui — apontou pra mim — um dia chegou da aula e pela cara perguntei o que tinha aprontado. Por sorte o chinelo que atirei nele foi bater na janela do vizinho. Amuado, disse que a professora não ia deixar ele assistir aula sem o livro de leitura.
Ela virou pra uma das meninas e pediu pra fechar a janela.
— Aí veio a enchente. Não deu pra salvar quase nada. Com a água no peito, saímos do beco segurando a corda que o vizinho atirou. Quando baixou era tudo barro. No fim da tarde, um dos meninos com a cara mais alegre do mundo apontou no outro lado da rua com um rolo de pano debaixo do braço. Não gostei e passei um pito. Não queria ninguém tirando proveito da situação. Não era o que eu estava pensando. Com o temporal, as faixas de propaganda tinham sido arrancadas dos postes. Uma das meninas pegou, abriu, embolou, entrou em casa, afastou a tampa do alçapão da sala com a vassoura e jogou pra dentro do forro.
Mamãe prendia a atenção de todos.
— Um pouco antes da meia noite, reuni todo mundo e levei pra Missa do Galo. A Igreja de São Sebastião estava cheia. Sentamos perto do altar lateral de Santa Edwiges, protetora das causas perdidas.
Eu não tirava os olhos da minha família. Era uma filharada bonita. Baixei a cabeça tentando segurar as lágrimas. Pedi a Deus que fossem felizes. Os mais velhos me olhavam com compaixão. Os pequenos, entre uma cochilada e outra, boquiabertos, observavam: a abóboda enorme, os anjinhos louros, os olhos esbugalhados das imagens.
— Mãe — interrompi —, eu era coroinha e devia estar no altar ajudando o padre Américo.
Ela sorriu e continuou.
— Antes da missa acabar, minha filha do meio cochichou no ouvido do irmão mais velho e veio até mim. Deu uma desculpa e disse que ia embora. O namorado estava esperando do lado de fora da igreja, eu tinha certeza. Os dois em casa sozinhos, a outra filha entendeu minha aflição, segurou meu braço pedindo calma.
— Quando a missa acabou, o coro cantou Adeste Fideles, os meninos saíram correndo na frente, eu lembro com se fosse hoje — acrescentou minha irmã.
— Na mesa da sala — mamãe contava detalhes — a travessa de arroz de forno avermelhado, e na bandeja um frango assado. Forrando a mesa, uma toalha improvisada: a cortina que separava a sala da cozinha, que na correria da enchente alguém arrancou e guardou. Antes de servir, pedi uma prece pro pai deles.
Acabei de comer, as três me chamaram. Entrei no quarto e vi as roupas de cama, tudo branquinha, cada uma mais bonita, nada daquela molambeira que eu não aguentava mais ver. Das faixas de propaganda guardadas no forro da sala no dia da enchente, as meninas fizeram o meu presente de Natal.
Demorei a pegar no sono. Só dormi quando virei pro canto e percebi na fronha, perto do meu rosto, uma mancha azul do tamanho dum bago de feijão, resto duma letra que fiquei raspando com a unha até fechar os olhos.
Postado por Anchieta Rocha
Em
24/12/2016 às 17h53
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