BLOGS
>>> Posts
Domingo,
5/2/2017
O fio de cabelo no lóbulo da orelha
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
+ de 1700 Acessos
Estava com o rosto diante do espelho contando as rugas quando percebi algo
quase invisível se movendo. Encostei o rosto até bem perto do espelho e me dei conta que havia um longo fio de cabelo no lóbulo da minha orelha direita. Puxei o danado, gritei de dor. Com o rosto abrasado, fiquei me perguntando por quanto tempo ele estava ali, sem que eu percebesse. Por segundos insanos pensei em fazer com aquele fio de cabelo o mesmo que fazia com o cigarro nos tempos de fumante: puxar papo, conversar diversos assuntos. Puxei novamente, a dor recuou porque já não existia a surpresa e no instante seguinte me preparei para dar fim ao incomodo, apanhei a tesoura e estiquei o fio até o fim, mas eis que reparando de perto, notei que o danado tinha um tom dourado. Será que alguém vai acreditar que quando criança eu era loiro dos cabelos cacheados? Talvez fosse o último remanescente dos meus tempos de cabelos cacheados e que tenha sobrevivido há mais de meio século. Senti um inesperado apego por aquele fio de cabelo e até pensei em guardá-lo numa caixa de vidro. Minha nossa, que louco é esse que guarda o fio de cabelo numa caixa de vidro? Depois fiquei em dúvida se devia contar isso numa crônica. Eis me aqui, decidido. Devo declarar que desde muito moço sofro com a falta de cabelos. Tenho cultivado ultimamente uma barba ralinha para disfarçar, que cuido com esmero, por vaidade e porque se tornou um motivo para eu ir a uma barbearia, costume que havia abandonado desde os anos noventa, quando os cabelos se foram e me tornei ligeiramente calvo. Foi um tempo ruim, de repente, tudo despencou. No começo, tentei disfarçar usando boné, mas não me acostumei, porque me pesava a cabeça e escondia os olhos. Nunca entendi o sujeito que tem cabelos e usa boné. Resolvi deixar para o outro dia o que fazer com o fio dourado. Quando acordei, corri para frente do espelho e procurei em vão o meu precioso fio dourado, mas notei apreensivo que só existia a maciez de sempre no lóbulo da minha orelha. Será que durante o sonho puxei sem querer a ponta da orelha e o fio se soltou? O que foi que sonhei, afinal? Não me lembro de nada. Mas recordei com riqueza de detalhes uma árvore imensa que existe bem à frente do colégio Dom Bosco, tão velha que deve ter visto de tudo, seus galhos secos insistem abraçar em tons cinza a cidade que engoliu o vilarejo, e lá no alto, bem no canto direito, num verde tão belo que emudece, despenca um fino galho de folhas verdes. E me apeguei àquele galho verde para nunca mais, porque ele desperta a vitalidade, o conhecimento e toda a história que ainda pulsa na árvore antiga, talvez tal e qual o fio dourado, agora desaparecido na minha orelha. Então pensei no amigo Marcos Estevão, que além de médico é poeta, psiquiatra dos bons, quem sabe numa boa conversa ele me indique algum remédio, ou apenas um bom gole de uísque, para por fim à falta que me faz aquele cabelo dourado, que sumiu sem se despedir, deixando esse inexplicável sentimento de vazio no lóbulo da minha orelha direita.
Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
Em
5/2/2017 às 18h25
Ative seu Blog no Digestivo Cultural!
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|