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Terça-feira,
14/2/2017
A viuvez da palavra
Ezequiel Sena
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Texto vencedor do Prêmio Nacional Assis Chateaubriand de Redação - 16ª edição/2010 -, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade.
Pela fresta da janela entreaberta, côa-se uma luz fêmea, de manhã nascitura. Raio sorrateiro pousa rasante sobre “A Rosa do Povo” em cima da mesa desarrumada do escritório. Abre-se o livro, bebe-se o cálice diário de poesia.
Lá fora, o sol ladrilha o dia, escancarado em luzes e cores, e o calendário do relógio lembra que é 17 de agosto. Há 23 anos, morria Carlos Drummond de Andrade. De tão multifacetado, até dizem por aí que a morte emendou a Gramática: “Morreram Carlos Drummond de Andrade”.
Uma concordância ideológica para os tantos poetas que trazia em si. Morta Julieta, filha e razão da sua vida, coração se esvaziou, resolveu pedir licença, fechar a porta e ir-se, morrer-se. Nesta inusitada transitividade do verbo morrer – aí proposital – evoca-se o modernismo transgressor, de cujas águas, um dia, bebeu o poeta.
Farmacêutico por formação, jornalista por sobrevivência, poeta por sina, não mais gastaria “uma hora pensando num verso que a pena não quer escrever”. “Pássaro […] livre na prisão do ar”, por certo, poderá, agora, penetrar “surdamente o reino das palavras” à cata das suas íntimas parceiras numa metalinguagem recorrente.
Pois bem, sem Drummond sobra uma dormência no território das palavras: um tanto de viuvez, um tanto de deserto. Elas se recolhem dicionarizadas, cobertas de pó, expostas nas prateleiras, à espera de um demiurgo que as ressuscite, que as reinvente, que as desperte do estado letárgico de hibernação.
É verdade: palavras rasas se esgotam no estro de outro, menos no de Drummond, que lhes resgata um significado novo com a lógica de uma semiótica ousada. Sem ele, palavra é pássaro de gaiola, é terra lavada e estéril, perde a liga, não dá tijolo para o verso, mergulha-se na trivialidade do óbvio, perde o brilho da alegoria, não insufla de alma o poema.
Sem ele, palavras são velhas prostitutas que não suportam a luz da manhã a lhes expor as rugas, a lhes desmascarar o viço postiço de uma maquiagem barata. Sem Drummond, sobra um outono sombrio e temporão na estação dos versos. Vestiu palavras gastas com tecidos novos – chitas ou sedas – e fê-las crer-se vestais nunca dantes manipuladas, ataviadas em pedrarias.
Assim, rompeu-lhes a maldição de “estado de dicionário” e as dicotomias denotação/conotação, significado/sentido. Soprou-lhes espírito de animação e fê-las pairar como a onda antes de arrebentar-se nas pedras da escarpa e, assim, postarem-se coaguladas, num instante eterno, à espera que sua pena as colhesse na plenitude da essência para o cio alquímico do poema, espraiando-se num mar de significados e vida, pois que, de cara lavada, palavra não gesta poesia e descamba para a noite eterna da insignificância.
Palavra na tinta de Drummond é bicho vivo, pulsa, queima, sangra, veste-se das mais inimagináveis metáforas, para decantar a angústia humana nas cenas triviais de uma “vida besta, meu Deus”. Conquanto armado de misterioso alçapão de pegar momentos, o fazer poético em Drummond era uma quase contrição, tão natural como o germinar de sementes; tão despojado, a ponto de decantar a flor plebéia, tímida, insegura e amedrontada que “furou o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio”. Tudo tinha a duração de uma vírgula pausando a eternidade de um minuto.
Drummond transitava entre o destecer de significados e o entretecer de outros, até que elas (as palavras) saltassem novinhas em folha para dentro do poema. Um mesmo vocábulo, corpo morto em lavra pobre, enraíza-se na seara do poeta e viça com vigor de ineditismo. Assim como, no dizer de Octávio Paz, “a pedra triunfa na escultura e humilha-se na escada, e a matéria, vencida ou deformada no utensílio, recupera seu esplendor na obra de arte”, na estética drummondiana, as palavras flutuam num campo semântico de sentidos vários, e se transubstanciam.
Hábil, Drummond sabia cortejar as emoções, de modo a cristalizá-las em versos, para o regalo e banquete do leitor. Há um abismo intransponível entre a poesia do momento e o ato de registrá-la, porque a matéria-prima do poema é etérea, fugaz, insubstancial, intangível, embora com intermitência de vaga-lume. Entanto, ante Carlos Drummond de Andrade, o fio do tempo – bicho arisco – estanca-se num coágulo poético, sem, paradoxalmente, deixar de fluir na sua sina e sede de eternidade.
Bem que Drummond poderia ter-se atido, tão somente, a decantar as mísulas das janelas barrocas, o cheiro de incenso fumegando nos turíbulos das novenas, a métrica dos pilões batendo cantigas nos quintais mineiros. Mas seu evangelho de versos era um tanto desmesurado a não caber no paroquialismo de sua aldeia. Havia de chegar, sim, o tempo do saudosismo, do tom afetuoso, em que, marcando sua poesia com o fogo da lembrança, “Itabira é apenas uma fotografia na parede”, a doer desatinada na alma do poeta, pois “Minas não há mais. José, e agora?”
O tom silencioso de “Infância”, a presença antitética da “preta velha No meio dia branco de luz”, a ingenuidade daquele “menino que ao sol posto perde a sabedoria das crianças” nem lhe davam conta de que sua “história era mais bonita que a de Robinson Crusoé”.
Drummond, uma caravela de seguidores navega nas águas abissais dos teus versos, vezes confessa como Adélia do Prado com “Quando nasci um anjo esbelto…”, vezes velada no “Brejo da Cruz” de Chico Buarque, vezes outras ignotas nos anônimos discípulos que fizeste.
É fato que ainda há leiteiros, virgens ou não, varando a solidão das madrugadas; Minas cristalizadas nos retratos empoeirados de um casarão qualquer por entre montanhas num silêncio quase litúrgico; histórias de desamor em vestidos pendurados; josés perdidos na “Máquina do Mundo”; o tempo, em fatais, ainda “industrializa a esperança” de ano-novo; e a “Verdade”, recolhe-se na geometria das metades, num contínuo desafiar que a vejam “conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia”.
Na sua oblíqua relação com o “Bruxo do Cosme Velho”, teria Drummond herdado um jeito Capitu de trair as palavras, saindo de cena silenciosa e sorrateiramente? Ou foram elas que, por não acompanhá-lo, zanzam loucas de orfandade farejando “faces secretas sob a face neutra”? Quem se arriscaria a dizer?
O certo é que Drummond deixou viúva a palavra e não levou apenas “Alguma Poesia”, mas carregou consigo, entre “Versiprosa”, todo o “Sentimento do Mundo”.
(Texto gentilmente cedido pelo poeta: Esechias Araújo Lima)
Postado por Ezequiel Sena
Em
14/2/2017 às 10h04
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