O senhor me perdoe a inconveniência de dirigir-lhe a palavra sem sequer conhecê-lo, mas um dos poucos benefícios que a idade avançada permite aos velhos é este — o de ser nada. E um nada não incomoda a ninguém porque inexiste. Portanto, faça de conta que não estou aqui, não tenho corpo e muito menos voz. O meu acidental interlocutor nem se tocou. Permaneceu mudo e quedo, uma estátua.
Então, de mim para comigo, sentado neste banco do cais, fiquei contemplando o crepúsculo sob a aragem do entardecer que tornava o ar mais leve e fino, matutando que a verdadeira beleza da vida estava na gratuidade das coisas e o que atrapalhava tudo, como quem picha um monumento público, era a realidade com seu pragmatismo nu e cru. Era ela, ou melhor, esse Leviatã que a espécie humana foi, aos poucos, através das gerações, gestando, nutrindo e aparelhando, que acabou se tornando o carrasco dos próprios sonhos da humanidade, os sonhos que, num tempo não muito distante, um dia todos tiveram e cuidaram como algumas pessoas até hoje cuidam de flores e jardins. Agora, se ainda houver sonhos, já nascem póstumos, o que é pior que natimortos. Os sonhos póstumos, como qualquer um de nós, também têm vida, só que, por assim dizer, intrauterina.
Não me contendo mais no silêncio absoluto de meus pensares e pesares, impulsivamente resolvi confrontar minha velha inimiga íntima — a consciência, essa tal que cada um carrega dentro de si, e com quem nada simpatizo, pois não raro ela me põe contra a parede, ora me censurando, ora me cobrando, logo a mim que já tenho um superego tirânico, como se isso, por si só, já não bastasse.
Estava disposto a vingar-me e comecei a provocá-la:
“Vamos falar de platitudes, pois é, platitudes... aliás, você sabe o que é? Ora, isso não é desdouro pra ninguém (se me permite a linguagem coloquial), platitude quer dizer banalidade em bom e puro vernáculo, outra palavra que faz tempo não ouço mais ninguém dizer e muito menos vejo escrever. Isso me entristece, mas não surpreende mais. Quem viveu até onde já cheguei e viu e leu, amou, sofreu, errou e acertou, sabe que no final a banca sempre vence.
A vida, na sua expressão mais simples, se resume a uma singela troca: não por acaso expressões como “o amor é o sal da vida” e outras que tais universalizaram-se desde as mais remotas eras. O termo salário provém de sal, quando o escambo ou troca, antes do advento da moeda, era a forma principal de pagamento de uma compra feita ou um serviço prestado. De lá para cá, só mudaram os condicionamentos exteriores, ou seja, o chamado processo civilizatório, tênue camada de verniz para melhorar as aparências.
Houve progressos sim, gigantescos até, e assustadores também, mas o descompasso, a dicotomia essencial ente instinto e razão não acompanhou a evolução científica e tecnológica que atingimos. Antes, agravou-se, face ao uso dessas conquistas tanto para o bem quanto para o mal. Como é notório, historicamente, as ferramentas da técnica e da ciência sempre foram caudatárias do poder, independentemente de seus criadores.”
Eu era um nada falando para o nada. Por meio desse exercício no vazio tentava também preencher as lacunas que cresciam no território da memória, assombrando-me.
Vivia o bizarro paradoxo da existência sobre que tanta vez meditei e bem ou mal escrevi, aludindo à cruel ironia da vida que marcha irrefreavelmente da síntese para a análise, do início para o inevitável fim, do alfa ao ômega. “Em meu fim está meu princípio” (“In my end is my beginning”) não é senão uma admirável imagem de T. S. Eliot, um dos luminares da poética universal, capaz, é claro, de nos tornar até um pouco mais humanos, como se tocados por algo de etéreo e iridescente que, do ponto de vista puramente material, não vai além de uma associação de palavras. Este o poder de transfiguração da poesia, carente de força motriz, valor mercantilístico, cotação na bolsa ou expressão econômica qualquer. Ou seja, um tudo que é nada ou exata e precisamente o contrário.
A vida como ela é, vida como vida, dura um mero enquanto. Sim, o fugaz enquanto de nossa transitória existência. Houve um filósofo cujo nome se esfumou na densa névoa de meus vazios que a figurava como um lindo bordado tecido por mãos caprichosas: na primeira fase da vida até o fim da maturidade, ele é visto em seu lado certo, embora, com o correr das décadas, já sem a mesma vivacidade das cores e riqueza dos finos detalhes de antes; na segunda fase, a do envelhecimento, o bordado mostra-se ao avesso — aquele emaranhado de linhas entrecortadas, embaraçadas e de nós cegos, indesatáveis, que não podem ser refeitos e, se desfeitos, desaparecerá por inteiro o bordado.
Numa reação instintiva de autodefesa, durante nossa breve vida ativa, nos iludimos e eludimos a consciência de nossa finitude, triste legado da racionalidade, numa espécie de jogo de esconde-esconde, faz de contas de falsa e triste brincadeira de adultos que tentam em vão, patéticos e desajeitados, ressuscitar a criança que foram um dia.
Mas é impossível transformar o enquanto, em que se resume nossa vida fugidia, num encanto, de modo a reencontrar o retorno ao solo mágico da fantasia, só à infância acessível. Ou talvez, quem sabe, os que perderam de todo o juízo possam retornar ao intransitável e encantatório caminho defeso aos adultos ditos normais.
Na busca de rotas alternativas, manobras diversionistas que nos afastem da ideia recorrente do desfecho que nos espreita, inventamos todo um rol inacabável de devaneios, de ilusões que não passam de melancólicos adiamentos da temível e indesejável hora — aquela que se evita pensar e muito menos falar e que, aliás, nunca andou tão próxima como agora com esses artefatos de destruição nuclear em massa encontráveis nos arsenais das mais diversas potências de matizes ideológicos divergentes. Outrora, as guerras, dada a limitação dos armamentos, tinham seu teatro de operações circunscrito; hoje, não. Eis o diferencial aterrador.
Daí a ânsia de viver o agora, e como ninguém oferece almoço de graça, a vida continua como começou, baseada na troca. Tudo tem seu preço. Nada mudou. Até o casamento, essa instituição praticamente falida, é uma troca de direitos e obrigações, de caráter contratual.
A racionalidade, que nos diferenciou e tornou a espécie dominadora de todas as demais, fez-nos também o mais temível dos predadores. Diz-se, por isso, que essa duvidosa faculdade é o tributo mais gravoso cobrado ao ser humano. Eis a superlativa ironia da vida...
Mas, creio, não devam levar muito a sério as divagações de um velho, que, não raro, se perde entre lacunas e hiatos, ziguezagueando sem mapa ou bússola nos descaminhos de um cérebro fatigado. Concedam-lhe, pelo menos, o benefício da dúvida. Garanto que dormirão melhor.
A essa altura, o sol já se pusera, a noite começava a cair. E meu suposto interlocutor ali estava, mudo e quedo, impávido e olímpico, uma estátua que não usava óculos. Lembrei-me, em contraponto, de Drummond, eternizado em bronze num banco da Praia de Copacabana. Com dificuldade, levantei do banco do cais em frente à pedra da Itapuca, em Niterói, ainda ofegante pelo esforço de falar comigo mesmo.
— “Você, além de velho, é maluco e um patético niilista, cuja obsessão doentia consiste em querer estragar a vida dos outros, com suas teorias mórbidas, roubando-lhes o direito de exercer, em plenitude, o dom da vida. No fundo, você não passa de um reles ladrão da felicidade alheia” — pareceu-me dizer, categoricamente, a voz de minha consciência. Era o seu revide, ao qual fingi não dar ouvidos, enquanto seguia a passos lentos para o exíguo apartamento de aluguel onde morava, tendo por pano de fundo a paisagem desalentadora dos edifícios que barravam a luz do sol e a passagem dos ventos.
Ela falara a verdade.
Ayrton Pereira da Silva