É bobagem criticar o filme de Scorsese pela temática cultural apenas, apelando para a crítica à Igreja, ou para o inglês falado pelos Jesuítas portugueses, que se arvoram a ir ao Japão do século 17 em busca de um padre que teria se renegado. Em tempos de acentuados “tudo me dói” e “isso não me representa”, fazer isso é um pouco de desonestidade intelectual.
Sutileza. Essa é a chave para se apreciar “Silêncio” (Silence, 2017). Sutileza da temática e sutileza - sim, há imagens fortes (sic) no filme - das imagens. Esqueçamos a vulgaridade com que se usa esse adjetivo; Scorsese nunca é vulgar, não precisa espatifar um escravo para dizer que isso não se faz (12 anos de Escravidão, etc etc etc.).
Não temos nada das imagens que mais marcaram a carreira do diretor, a câmera não representa freneticamente as cenas, a imagem não congela com uma trilha sonora ao fundo, o cenário não é sempre belo (Kundun – 1997) e nós não nos identificamos, inequivocamente, com um personagem, mesmo um assassino, carismático.
A sutileza da temática religião/fé está representada em cenas e imagens que merecem ser observadas com atenção e alguma percepção contemplativa. Esse aspecto sutil está, por exemplo, na presença do personagem Kichijiro (Yôsuke Kubozuka). Kichijiro é o guia da expedição. Ele perdeu a família que se recusou a renegar a religião cristã. Vive atormentado, porque renega e sobrevive.
Ele é a personificação da incompreensão, medo, culpa e dúvida que atravessam a narrativa e marcam, decisivamente, o protagonista, padre Rodrigues (Andrew Garfield, em uma atuação que, espero, apague da memória adolescente seus arroubos infantis). Kichijiro, a todo momento, trai o padre e, ao mesmo tempo, quer se confessar para obter o perdão e ficar “limpo”.
O que, ao final, padre Ferreira (Liam Neeson), o jesuíta “adaptado”, questiona sobre a força da religião, a diferente ideia de Deus, a incompreensão do cristianismo pelos japoneses, se mostra, quase como cinismo e ironia, em Kichijiro. Sempre encontrando uma saída “fácil” na praticidade do mundo real, ele é aquilo que é sujo, corrupto e covarde e que ameaça degenerar qualquer convicção, ameaça, em “Silêncio”, a convicção da fé.
Esse embate entre espírito e carne, fé e realidade, será a cruz do padre Rodrigues. Ele mesmo se vê, alucinadamente, como Cristo e imagina, com Jesus, conversar. Incondicionalmente, movido por sua fé, ele passa pelas provações do mundo que o rodeia. Um mundo no qual a cultura nativa quer, pela violência sobre os cristãos japoneses, convertê-lo para que ele sirva de exemplo.
Exemplos são modelos a serem exibidos. Rodrigues questiona-se sobre ceder em prol dos camponeses torturados. Sua agoniante indecisão representa a complexidade temática de um filme que não cede a esquematismos e maniqueísmos. A lógica simples do colonizado versus colonizador aqui não cabe, se esmaece.
Não se trata aqui apenas de um choque cultural. É claro que ele é um cenário temático do filme. Mas ele não é, de modo algum, sua única razão. Serve para uma leitura antropológica, mas serve, especialmente, para uma leitura estética (não são inseparáveis). Não adianta gritar pela urgente politização do filme, ou pela culpa do ocidente. Isso é apenas uma leitura do que o filme não se propõe e não é. Deixemos isso para as ladainhas dos likes.
Scorsese não quer simplesmente escolher um lado, ele não fez um filme para a fruição dos blockbusters, nem está glorificando aquilo que é, fundamentalmente, complexo, porque, evidentemente, humano. Seu caráter épico está em sua singeleza de mostrar uma história que não é para ser vista como uma aventura em uma terra distante. Já temos aventuras demais e histórias de menos e uma terra distante entre ambas.
Silêncio como modo de ouvir e compreender. Como questionamento e ascese. Para ouvir a si próprio, para compreender o silêncio de Deus, diante do barulho angustiante dos gritos de dor dos que são crucificados no mar e pendurados de ponta-cabeça em poços. Um tipo de expiação, nos mostra Scorsese, sem o qual nem a certeza da fé, nem a sua dúvida podem ser contempladas. Nem o júbilo frágil da imanência, nem o sublime tênue da transcendência. Silêncio.
Relivaldo Pinho é autor de, entre outros livros, Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia. ed.ufpa, 2015 .
Texto publicado em O Liberal, 14 de março de 2017, p. 2.