Acredite. Eles formavam um jovem casal feliz. Ele morre, inesperadamente. Ela, grávida, é catapultada para um luto que não pode arrancar. Já vimos esse roteiro, certo? Literatura, cinema e televisão já nos deram essa imagem, inseparável, do romantismo e da dor.
Mas, em Black Mirror, a introdução dos aparatos técnicos que, propositalmente, parecem próximos a nós, tornam aqueles sentimentos, hoje, provocadoramente latentes. Identificamo-nos com o seriado porque ambos, sentimentos e técnica, nos constituem.
Imagino que deva haver muita controvérsia sobre Black Mirror. Imagino também que isso deva se dar, em grande parte, pelo modo como nós sempre lidamos com a técnica. Lembremos do impacto da fotografia quando do seu surgimento; para alguns, ela se assemelhava à bruxaria; para outros, talvez fosse até capaz de capturar a alma humana.
Há uma fina tela, ao mesmo tempo transparente e translúcida, entre capturar e exibir. Em certo sentido, essa é a pretensão da série. Em Black Mirror, a tecnologia é o meio através do qual as frestas da alma (psique) – nossa dimensão mais explicitamente visível porque subterraneamente casulosa – pretendem ser exibidas.
Psicose coletiva, sadismo, aceitação, narcisismo, repressão, obsessão, compulsão (vi finalmente uma série inteira, uma atitude – compulsiva? –, como sabemos, cada vez mais comum), voyeurismo, punição, culpa, fobia, perversão, finitude, projeção. São parte dos algoritmos psicanalíticos que compõem esse produto do entretenimento.
Podemos pensar que a série usa a velha forma de produzir cultura tomando temas sérios e diluindo-os para a persuasão. Mas, quem sabe, esse discurso entre cultura e mercado não deva unicamente ser pensado desse modo. Talvez possa ser pensado em uma complexidade que o conceba como parte desse mundo, como sua expressão, mercadológica, sim, mas que, mesmo como entretenimento, suscite algum tipo de espelho (speculum) sobre o qual se pode refletir.
Nessas produções isso pode ser uma assimilação desses temas (sérios e pop) como modo de identificação e fascínio, mas isso, inegavelmente, tem se tornado, hoje, um modo sofisticado de realizá-lo e, por que não dizer, uma maneira sedutora de nos colocar diante de alguns problemas candentes sobre os nossos Fahrenheit 451 (Truffaut, 1966).
Mesmo não sendo novidade na exibição desses sentimentos (neuroses), o seriado mostra essa condição que nos define dentro de relações humanas, adquirindo uma nova forma de vê-las. É o seu núcleo. Ver cada vez mais a si mesmo e o outro.
Se as novas tecnologias tornaram nosso “Eu” kitsch, nos capítulos da série, essa relação com a alma, quase nunca é redentora. Nessa clínica em telas estetizada, a narrativa não significa, necessariamente, “reflexo”, catarse.
Há, provavelmente, nesse modo de caracterização uma herança que sempre nos distancia, receosos, dessa técnica. Uma herança tecnofóbica, mas que, hoje, é inseparável de sua adoração, incontornavelmente, tecnófila. Perdemos o medo da câmera fotográfica, agora flutuamos augustos por entre essas luminosas e diáfanas telas-mundo, mas ainda somos temerosos do que elas podem revelar, como um espelho negro que pode ser estilhaçado.
Em outro contexto, escreve Umberto Eco (Sobre os espelhos e outros ensaios): “A magia dos espelhos consiste no fato de que sua extensividade-intrusividade não somente nos permite olhar melhor o mundo mas também ver-nos como nos veem os outros: trata-se de uma experiência única, e a espécie humana não conhece outras semelhantes”.
Talvez não conhecesse exclusivamente pela lógica do espelho de vidro, mas essa experiência se tonou ressonante nas caixas espelhadas que não param de ecoar. Talvez porque Eco, a ninfa, continue a lançar sua maldição sobre nós, e as palavras de Tirésias seguem a replicar o destino do belo Narciso vaticinando que ele, ao se conhecer, sucumbiria a si mesmo.
É o que faz a jovem que perde o marido. Sucumbe no seu “Eu”, sem poder deletá-lo. Compra um ciborgue, um simulacro, a imagem e semelhança do amante perdido. No início, ela o aceita, depois o repele, para, em seguida, confiná-lo no sótão, como algo a ser escondido e guardado. Narciso às avessas? Nem tanto.
Como nossos sentimentos, em um casulo, o hominídeo em bytes está, permanentemente, lá. Vez por outra poderá descer à vida, desde que não a incomode. A mãe, segue. É aniversário da filha, é a vida dando um jeito de seguir, com as neuroses, em frente. Pode parecer uma simulação, mas, na alma do contemporâneo, há uma fina tela, ao mesmo tempo transparente e translúcida, entre capturar e exibir.
Relivaldo Pinho é escritor, pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 11 de abril de 2017, p. 2.