"Lasciate ogni speranza, voi che’entrate”
(Dante, Inferno, Canto III)
Inquirições
Voa o anjo por ser anjo
ou por ter as asas grandes?
Nenhuma dessas razões
é resposta convincente,
pois não explicam nem juntas
qualquer das duas perguntas.
Estranho à angeologia,
meio-ave-meio-gente,
um ente quase alegórico,
carrega consigo o rótulo
de ser lenda ou aberração.
Desorientação
Sem rumo o tal anjo voa
como se fora um besouro.
A dinâmica que os sustenta,
embora diversa a aparência,
no fundo não faz diferença.
Esse anjo voa à toa,
tão à deriva nas nuvens
que ao náufrago se afeiçoa.
Sem ser visto, não descura
da superfície das coisas.
São rasos esses telhados
de refratária cerâmica
e bem mutáveis as frondes
que só aos ventos respondem.
Melhor é vê-los de longe,
como essas águas e os mares,
delimitando horizontes,
que se comprimem e distendem
em infinitos aondes.
Genealogia
Será o anjo ex-divino?
Será o anjo um demônio?
Talvez os dois (por que não?).
Sua híbrida figura
por entre as nuvens emula
com o condor e o falcão,
mas já não infunde medo,
pois de há muito foi banido
das potestades do Empíreo.
Sobrevoo
Flanando sobre a cidade, pombo grande na verdade,
asa-delta ou parapente,
metade pássaro e gente,
talvez nem isso ou aquilo,
nem se pergunta quem é.
Um volantim metafísico?
Imagem de holografia?
Ou apenas projeção
das culpas já cometidas?
Simbologia
Nas narrativas simbólicas,
entre pompa e circunstância,
raios de luz vazam nuvens,
sons de liras e trombetas,
epifanias, arcanos,
confusas visões de sonhos...
Metido nesse cenário,
tem marcado o seu papel
no teatro planetário.
Entretempo
No entretempo de um ato,
vaga qual desempregado,
menos que anjo ou demônio,
asas rotas, ventre magro,
penas cinza de encardidas,
tantos verões e partidas,
efemérides, intempéries,
quantas hégiras sem saída...
e essas torres, esses sinos,
no alto dos campanários,
que vê de longe assustado,
pois nem servem de abrigo
ao alado peregrino.
Ayrton Pereira da Silva