Segunda-feira
O processo sôbre a mesa.
O problema na cabeça.
A refeição sôbre a mesa.
Sôbre a mesa a sobremesa.
Doce no prato: mil-fôlhas.
Devoro as folhas, faminto,
do processo sôbre a mesa.
Têrça-feira
O barbear apressado
plat-plus plat-plus plat-plus
de ôlho no relógio
tic-tac tic-tac tic-tac
é corte na certa, zás,
abrindo zíper na pele
que jorra sangue mestiço
álcool motor do meu ser
que só não pode parar.
Quarta-feira
Pare e pense! Um anúncio?
Não. Aviso. Olha o enfarte.
(Estou enfermo, estou morto
Mas não deixarei de amar-te).
Acordo que já são horas.
Tava sonhando, ora bolas!
Quinta-feira
Há um clarão lá no céu
entrando pela janela.
Por um momento pensei
que fosse a lua desperta
prata branca de baixela
como nos tempos de infância.
Mas era luz do holofote,
desiludida esperança.
Sexta-feira
Despachos a Iemanjá.
Não despachei o processo
sôbre a mesa a encarar-me.
Mil fôlhas, dez mil dizeres.
Que fazer dos afazeres?
Sábado
Desperto com o processo
insone na cabeceira.
No bar, no ar, o processo.
(Amanhã procuro o médico).
Domingo
Levanto entre parênteses.
Trégua na luta diária.
Vou à praia, almoço fora
só mais tarde é que regresso,
mas levo prêso à lapela,
à pele, à alma, ao sapato,
abotoado comigo,
nó cego que não desata,
amarra firme que pega,
o safado do processo.
Ayrton Pereira da Silva
in Caderno Prosa & Verso do jornal O Fluminense, 1971
(Mantida a ortografia da época)