O circo chegou ao vilarejo em meio ao tumulto de clarins e fanfarras que não combinavam, despertando a fúria dos cães vadios do lugar que prorromperam em latidos coléricos, enquanto os galos dos quintais soltavam um canto extemporâneo e esganiçado em sinal de protesto contra a violação do silêncio da tarde.
Uma estranha trupe de figuras bizarras foi descendo das carroças que mais pareciam aquelas do Velho Oeste, não fossem puxadas por enormes bois de canga, com argolas douradas nas ventas. O mugido dos vacuns se misturava à confusa melopeia como um contracanto de estranhas sonoridades.
Logo, logo, a população local, acordada em plena tarde pela súbita algazarra, deixou as cobertas e saiu de suas humildes moradas a ver o que se passava.
O circo, para desencanto geral dos circunstantes ainda estremunhados pela interrupção da sesta, não trazia leões nem elefantes, tampouco engolidores de fogo, mulher barbada ou palhaços.
Alheia ao que se passava ao redor, a trupe circense começou a armar o picadeiro ao ar livre, e foi uma decepção total para os nativos a constatação que o circo nem cobertura de lona possuía.
Em meio ao espanto geral, um cavalheiro surgido do nada, envergando fraque e cartola, desenhou no ar, com suas luvas brancas, o anúncio de que o espetáculo iria começar no justo instante em que a estrela Vésper acendesse a primeira luminária do céu. “Este é o Circo das Estrelas”, foi a frase final que escreveu, com letras maiúsculas, no ar. Deixou que as palavras, formando frases perfeitas pairassem suspensas no espaço, e depois as soprou, transformando-as num bando de borboletas multicores. Houve um oh! de surpresa de todos os moradores, já magnetizados por tantos eventos que contrariavam a realidade.
Quando a noite desceu por trás dos montes, as lamparinas das casas se apagaram e o povoléu, umas cem almas, se tanto, acorreu ao logradouro baldio, carregando tamboretes, bancos compridos e cadeiras, pois o circo sem lona ali instalado só tinha mesmo o picadeiro. Estavam ávidos de curiosidade diante da perspectiva de sonharem, de novo, acordados.
No centro do palco, apresentou-se um homem de bigode e cavanhaque bem cuidados, com um fardamento que lembrava o dos vaga-lumes dos cinemas antigos, dizendo-se um mago. A um gesto seu, ouviu-se o rufar de tambores e taróis que certamente não provinham de nenhum instrumento de percussão visível, nem
de aparelhagem de som alguma, até porque naquele vilarejo remoto a eletricidade ainda era algo desconhecido.
Então, o homem que se dizia um mago declarou que não era mágico, mas apenas um humilde aprendiz de feiticeiro. Os moradores se entreolharam em silêncio, mas o ilusionista não pareceu notar aquela troca muda de olhares que sinalizava o descrédito da plateia.
Uma menina de uns nove anos, notória por sua beleza, foi convidada a subir no picadeiro, onde já se encontrava a estranha forma de uma caixa negra da altura de um pé-direito.
“Pode entrar na caixa, Samaria”, disse-lhe o mago com delicadeza. A garota arregalou os grandes olhos de água-marinha emoldurados por pestanas muito louras, tal o seu espanto: como é que ele sabe o meu nome, se nunca vi esse mágico na vida? A menina murmurou para si mesma.
Do sucedido entre o sorriso do mago e o sussurro inaudível da menina, o público nem sequer tomou conhecimento.
Quando o mago abriu a caixa onde a menina entrara, uma exclamação de assombro estremeceu a plateia: a caixa estava vazia!
Matronas de joelhos calejados por incontáveis genuflexões no confessionário da capela e nas duras penitências, persignaram-se em uníssono. A mãe de Samaria sofreu um desmaio, obrigando o pai a guardar a garrucha, que já sacara da cinta, para segurar a esposa obesa antes que se esborrachasse no chão. O pároco da aldeia ameaçou o mágico com os horrores do fogo do inferno, numa prédica virulenta, mais cuspida que pronunciada e que, devido ao tumulto generalizado, só foi captada pelos ouvidos apurados do ateu do lugar, que carregava consigo o estigma da licantropia. Ele sorriu então um raro sorriso, mostrando por momentos seu esgar canino.
Como se não bastasse sua fama de lobisomem, eram seus os artigos heréticos da modesta gazeta de folha dupla, que circulava a cada quinzena entre os do lugar, composta numa prensa contemporânea de Gutenberg, cujos exemplares eram comprados na barbearia onde se juntavam os homens para assuntar as modas e maldizer dos ausentes. Esses artigos ímpios eram a matéria-prima dos sermões coléricos do pároco da aldeia, que, do alto do púlpito, relampejava e trovejava predições terríveis e indescritíveis castigos para os descrentes e os detratores da religião.
Suando em bicas por todos os poros, o mago se esforçava por trazer de volta a menina desaparecida. A muito custo, surgiu em seu lugar uma ave imaculadamente branca com estranhos olhos de água-marinha e cílios louríssimos.
− Eu bem que avisei a todos que não sou mágico! − declarou o homem fardado de vaga-lume, num tom solene e categórico.
Nisso, o insólito pássaro saiu da caixa negra que estava aberta e tatalou as asas num voo majestoso, subindo aos céus. A plateia então prorrompeu em palmas estrondosas, enquanto um tiro certeiro desferido pela garrucha do pai da menina fez tombar o mágico no centro do picadeiro, mas a assistência, com os olhos pregados nas alturas e os ouvidos ensurdecidos pelas palmas ininterruptas, extasiada pelo espetáculo miraculoso jamais visto e sequer imaginado, nem se apercebeu da morte do mágico, como se fosse um dramalhão barato de circo mambembe de última classe.
Ninguém jamais assistira a algo assim.
E o fantástico episódio da menina que se transformou em avoante virou lenda, transmitida de boca em boca através das gerações, sendo até hoje contada e recontada, enquanto houver vida naquele lugarejo perdido...
Ayrton Pereira da Silva