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Quarta-feira,
16/8/2017
A imagem de Haroldo Maranhão
Relivaldo Pinho
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Livros de Haroldo Maranhão. Foto: Relivaldo Pinho
Haroldo Maranhão perseguia uma imagem. Ou, melhor, ele perscrutava as imagens. Isso, aqui, vai além do lugar-comum. O fato, o comum, no escritor paraense, sempre existiu como maneira de invertê-lo. O cotidiano, desempacotava como uma biblioteca; a história, transfigurava como um contador.
É um dos melhores narradores de nossa literatura. Narrar é, em seus romances, contos e novelas, a atitude por excelência que se insere na vida, quase sempre ordinária e fugidia, e no mundo recriado que, recontado, reencontra o passado.
A morte vira, pelos motivos mais inesperados, troça (“O defunto e seu bom bocado”, 1983); inventa o próprio fim, ou o do seu duplo (A morte de Haroldo Maranhão, 1981); mimetiza a guerra ocorrida, a partir da década de 1930, entre seu avô, Paulo Maranhão, o “mais odiado que amado” proprietário do jornal a “Folha do Norte”, e o Intendente do Pará, Magalhães Barata (Rio de raivas, 1987).
Fazendo jus a Machado de Assis, uma de suas maiores influências (Memorial do fim: a morte de Machado de Assis, 1991), sua prosa toca o que descreve, nela se inscrevendo. Como um artesão gráfico que, não sendo apenas mecânico, da prensa móvel do mundo, dispõe as coisas em palavras.
No caso de Haroldo, isso não é apenas uma metáfora. Durante parte de sua infância ficaria exilado no prédio do jornal (na Gaspar Viana, antiga sede de O liberal) de seu avô. Lá, entre máquinas e funcionários, os assoalhos se transformavam em piscinas, a rotina do jornal em uma pátria, obrigatoriamente, encastelada.
Essa época fora representada em seus belíssimos textos de Querido Ivan (1998), livro composto de cartas memorialísticas que escreveu ao irmão moribundo. Sempre que penso na diferença entre literatura e confissão – para lembrar, não fortuitamente, Mário Faustino (1930-1962) - penso nesse livro. É Mnemosine, levada pelas mãos de Caronte, a atravessar o tempo.
Vendo uma foto de infância, nos altos da “Folha”, Haroldo recorda: “Nós descíamos da chamada ‘Residência’ pela escada em caracol (de madeira) para metermos o bedelho na redação. Descendo a outra escada em caracol, esta de ferro, para fuçarmos as coisas da oficina. Tínhamos fome de aprender tudo, de conhecer os segredos da ‘máquina de moer ossos’ (jornal, na definição de Paulo Maranhão), que ia do mais modesto suplente de revisor aos operadores da ‘Marinoni’, a impressora francesa que o tempo tornaria obsoleta. Conquistamos amigos, poucos, que até nos ajudavam a compreender aquele mundo que nem era mundo, mas mundinho, para nós então inabarcável”.
Tempos depois, coordenaria no jornal o Suplemento Literário “Arte e Literatura”, decisiva referência sobre a cultura do Estado. Os livros já eram parte essencial de sua vida, o que o levaria, no final da década de 1950, a fundar a Livraria Dom Quixote.
Essa bibliofilia se expressaria em toda sua fisionomia, anos mais tarde, quando organizou uma das obras mais importantes sobre Belém do Pará, o livro, hoje já raro, Pará, capital: Belém: memória & coisas & loisas da cidade (2000).
A cidade é descrita por nomes que vão de Padre Vieira, passando por Vicente Salles e Eidorfe Moreira. “Mas o que finalmente nos ensina esse texto de Haroldo Maranhão [...] é que uma cidade só pode ser lida como antologia por meio das diferentes escritas, das linguagens de seus escritores, que lhe deram no tempo uma forma de sentido intemporal”. Escreve, no prefácio, Benedito Nunes, um de seus maiores amigos e críticos de sua obra. Em 2005, o ensaísta organizaria uma coletânea de contos de Haroldo intitulada Feias, quase cabeludas, uma excelente amostra de sua inventividade.
Antes de sua morte, Haroldo não desistira de encontrar uma imagem, a de Felippe Patroni, o pioneiro da imprensa no Pará, fundador do jornal O paraense, que teve papel determinante na Cabanagem, e que se tornara o protagonista do seu romance Cabelos no coração (1990).
Haroldo perseguia uma imagem. Mas já havia nos dado algumas das melhores imagens fantásticas, memorialísticas, ficcionais históricas, que um escritor poderia alcançar. Conseguiu nos deixar exemplos de versatilidade temática e narrativa, raramente vistos entre escritores até mais famosos – e, não poucas vezes, menos talentosos - que ele.
Em 2017, Haroldo Maranhão completaria 90 anos. Ele, que dizia que escrevia feito um possesso (“como se me restassem horas de vida” - Senhoras e senhores, 1989), precisa ser reeditado, lido, divulgado, estudado. É preciso lhe dar a imagem que ele, inequivocamente, merece.
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 08 de agosto de 2017, p. 2.
Postado por Relivaldo Pinho
Em
16/8/2017 às 12h54
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