Com um crescente som orquestrado surge um nome: Metropolis. Ele se mistura com a imagem que vai aparecendo da cidade-Babel e, em seguida, várias engrenagens fundindo-se em imagens. O som é rápido, angustiante, temeroso, como se as máquinas estivessem a nos perseguir. Surge o relógio impiedosamente girando seu ponteiro, aparecem novamente as engrenagens e o apito da fábrica soa anunciando a troca de turno.
Essa é a clássica abertura do nonagenário filme Metropolis (1927), de Fritz Lang, uma das mais importantes obras que se relacionam ao Expressionismo alemão. Importante por vários motivos conhecidos, por pertencer a esse movimento, pelo seu contexto histórico e social (a Alemanha pós-guerra, o desemprego e a inflação), por sua inovação técnica e dramática e por ser uma narrativa real e distópica, profética e consumada.
Esses elementos sempre são evocados para se falar do expressionismo e de Metropolis, o filme que mostra uma cidade futurista dividida entre os que moram confortavelmente na superfície em gigantescos prédios e aqueles que trabalham e vivem no subterrâneo, trabalhadores eternizados na sequência síntese na qual eles andam mecanicamente ao entrar e sair da fábrica.
“Os expressionistas não tinham por objetivo representar a realidade concreta. Interessavam-se mais pelas emoções e reações subjetivas que objetos e eventos suscitavam no artista e que ele tratava de ‘expressar’ por meio do amplo uso da distorção, da exageração e do simbolismo”, diz Luiz Carlos Merten em “Cinema: entre a realidade e o artifício”.
Com todas essas características, não por acaso, o movimento ficaria conhecido como um aviso, ou uma premonição, do que se seguiria na Alemanha, posteriormente, com o Nazismo.
Na edição do filme lançada em 2010, já restaurada com o acréscimo de 30 minutos, há uma cena na qual, dentro de uma casa, elevadores sobem e descem, como cápsulas, e nos quais o habitante deve entrar para seguir o seu destino.
É uma cena aparentemente simples, mas ela pode muito bem ser pensada como um fragmento de uma sociedade na qual o indivíduo é parte de um sistema mecanizado que o condiciona como elemento orgânico, substituível, da cidade.
Em uma pequena nota de rodapé, Deleuze (1925-1995), em A imagem-tempo, faria alusão a essa relação entre massa e indivíduo nas formas estéticas, como teatro, cinema e ópera.
Diz Deleuze: “O teatro e a ópera se deparavam com o seguinte problema: como evitar reduzir a multidão a uma massa compacta e anônima, mas também a um conjunto de átomos individuais? Piscator, no teatro, impunha às multidões um tratamento arquitetural e geométrico que o cinema expressionista, e Fritz Lang, em especial, também adotará: é o caso das organizações retangulares, triangulares ou piramidais de ‘Metropolis’, só que é uma multidão de escravos”.
Não, não podemos ver unicamente essa relação como uma arquitetura maniqueísta, lembrando Freder (par de Maria) que vê Moloc, o deus, monstro-máquina, a devorar as pessoas. Mas, caminhando para o final do filme, desponta a cena na qual Freder alucinado vê a morte, o ceifeiro, a carregar a foice em sua direção. As plaquetas anunciam: “A morte desce sobre a cidade”.
A cidade então parece caminhar, inevitavelmente para o apocalipse, para o caos. Como aquela Metropolis tão sistematicamente organizada, arquitetonicamente erigida, sucumbe, justamente às maquinas que lhes construíram e aos homens que lhes sustêm, é o cerne dessa narrativa.
Não se trata de ver, hoje, uma luta, recorrente no cinema, entre homem e máquina. Mas trata-se de observar como a cidade surge como templo, em adoração e castigo. Continuamos a erguer uma maquinaria da qual nos glorificamos e com a qual nos sentimos, cada vez mais, impotentes e, antiteticamente, dominadores.
As cidades não são mais unicamente separadas entre espaços que não se relacionam, mas isso não diminuiu o caótico sentimento de que delas não pertencemos inteiramente. De que nosso mecânico caminhar, como autômatos a olhar para máquinas que agora portamos, permanece contido em uma ideia de que sempre, a cada passo, contraditoriamente, podemos nos libertar.
Isso também é um tipo de alucinação/fascinação na grande metrópole, mas colocamos uma película, uma tela, entre a urbe e nós e, resignados, como no final do filme – repudiado por Lang –, podemos até nos dar as mãos e seguir.
Relivaldo Pinho é pesquisador e professor.
Texto publicado em O Liberal, 05 de setembro de 2017, p. 2.