Título capcioso este, não é? Seria bem mais fácil deixá-lo de lado, trocá-lo por outro como quem troca de camisa. Na verdade nem fui eu que o criei, ele é do poeta Jh Mon. Mas, não sei por que, talvez por se assemelhar a um sofisma que me provoca, decidi enfrentá-lo cara a cara, sob todos os riscos que poderão ocorrer.
Faz muitos anos, em Nova Friburgo, ao voltar do bairro do Cônego, passando por um bosque, visto pela janela do carro, surpreendi-me com uma cena insólita: uma menina e um garoto tentando caçar, com uma rede na ponta de dois bambus compridos, umas borboletas multicores que voejavam por perto. Mostrei a minha esposa aquele flagrante da vida, um dado concreto de realidade, que poderia muito bem ter saído de um filme de Bergman, como Fanny e Alexander, por exemplo.
Não sei se o bosque ainda existe. Aquelas crianças já serão adultas. Nunca mais voltei àquele amorável burgo serrano, apesar de ter vontade. Mas não somos nós que conduzimos o destino.
Outra vez, saídos do Cine da UFF, em Icaraí, onde assistimos ao Anjo Exterminador, de Buñuel, impressionante por sua trama e atmosfera góticas, ao voltar para casa de carro, nos deparamos no meio de um cortejo de pessoas estranhamente vestidas, ostentando galhardetes, flâmulas, lanternas acesas com velas na ponta de longas varas. Aonde fomos nos meter agora?, sussurrei, perplexo, para minha mulher.
Estaria de novo dentro de outro filme? Mas era real o que vivemos e vivenciamos. Era, creio eu, um séquito da PFP, se não me falha a memória já um tanto nebulosa pela corrosão do tempo. Cheguei à conclusão de que estava num mundo surreal que era, todavia, real, se é que dá para entender...
Aí comecei a matutar sobre tais acontecimentos que desafiavam minha racionalidade e minha lógica. “Viver é muito perigoso”, já o dizia o inesquecível Guimarães Rosa, numa espécie de bordão, em Grande sertão: Veredas. E é.
Então, tentei conciliar tais fatos inusitados com o nosso quotidiano, quer dizer, com o dia a dia da vida comum, onde o outro está fora do nosso alcance. Seria a vida, em última análise, uma falácia? Mas a vida é o pedaço de tempo e de espaço que a cada um cabe. Depois vem o depois... o desconhecido, o que não sabemos.
Será que residiria em tal conciliação o misterioso segredo que o ser humano precisaria desvendar? Confesso que não sei, e isso me assombra porque esta questão fundamental envolve a minha própria percepção da vida — o desvelamento de minha verdade, que subjaz no intertexto das aparências. Mal comparando, seria uma espécie de palimpsesto, onde existe, pelo menos, um texto oculto pelo texto que se lhe sobrepõe e que somente nos tempos modernos, com a aplicação de sofisticadas tecnologias, se tornou possível decifrar o até então inextricável.
Essa tentativa de descobrimento é um contraponto esfíngico: um paradoxo, um oximoro difícil de ser transposto, como a travessia de uma pinguela para chegar à margem oposta. Há o risco inevitável de cair que, aliás, corro agora.
A meu ver, não há nada mais paradoxal que a vida. A vida, penso, é hegeliana por definição e essência. Desde que nascemos, marchamos da síntese para a análise, o ponto-final de cada um de nós, num processo que sempre se repetirá ao logo das gerações, enquanto vida houver.
É a nossa predestinação ontológica.
Durante nossa peregrinação terrena, usamos muitas máscaras, temos, pelo menos, duas personas, uma de uso externo, outra de uso interno, esta da qual fugimos, por ser muito penoso nos encarar diante de nós mesmos, com nossas fraquezas, nossas culpas, remorsos, rancores, pensamentos espúrios, sinistros, coisas que nos envergonham e supomos ter jogado na lata de lixo, mas permanecem naquele baú sem alça — a caixa-preta que todos carregamos dentro de um lugar ilocável do crânio, que não conseguimos abrir.
Não passamos de reles atores de um teatro planetário, cujas peças inumeráveis são encenadas no velho palco do mundo. A vida de cada um, em qualquer lugar, se resume a isso. No entanto, há personagens que conseguem desempenhar seu papel com mais esmero que os demais. Eles conseguem viver em harmonia com a existência, colhendo as lições de seus erros e acertos, fruto das opções que todos tomamos ao longo de nossa jornada e aceitando-as, como uma forma de aprendizado. E aí se incluem todos os estratos sociais. Foi o grande Ortega y Gasset quem cunhou o aforisma “o homem e sua circunstância”, que significa não poder o ser humano viver sem conectar-se com a realidade exposta diante de seu olhar e que o condiciona a fazer opções em face das encruzilhadas de sua existência. A circunstância faz parte do homem.
Acredito — porquanto é um imperativo categórico fazê-lo, para que a vida tenha algum sentido — existir ainda, entre nós, quem tenha alcançado o equilíbrio interno, de modo a conciliar-se consigo e com a própria vida, superando os percalços do pedregoso caminho.
“Viver é muito perigoso”, todos o sabemos, porque não ignoramos nossa finitude. Exatamente por tal motivo, cumpre viver a vida em toda a sua extensão.
Como é impossível prever o futuro e o passado não pode ser revivido, somente relembrado, o que nos resta é viver o presente, esta sucessão de instantâneos onde transcorre a vida, o nosso lugar, o nosso enquanto, o habitat em que vivemos, amamos, sofremos, viajamos, sonhamos, nos alegramos, nos entristecemos, nos realizamos. Esse breve lapso de tempo cujo espaço é o palco do teatro planetário.
Ayrton Pereira da Silva