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Quinta-feira,
1/2/2018
Um dia de maio
Anchieta Rocha
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O próximo ônibus só iria sair dentro de duas horas. Acabei de abrir o jornal, um homem com uniforme da rodoviária pediu licença e sentou perto de mim.
— Será que um desses ônibus que vêm de Curvelo, de Montes Claros, não entra aqui em Pedro Leopoldo pra pegar passageiro pra Belo Horizonte? — perguntei pra ele.
— Não senhor. Eles passam direto.
— Então o jeito é esperar.
Espichei as pernas e abri os braços espreguiçando. Ele puxou um maço de cigarros do bolso e me ofereceu.
— O senhor trabalha aqui tem muito tempo?
— Faz tempo.
— Gosta do serviço?
— O serviço é bom, acontece muita coisa, ajuda a passar as horas.
— Que tipo de coisa acontece?
—Aqui dá de tudo. Confusão, briga, até tiro já teve. Choro é o que mais tem. Alegria também tem muita.
Não parava de falar.
— Tem gente, cada hora dum jeito: uns que não querem ir, outros doidos pra partir e os mais tristes de todos — os que esperam os que nunca vão chegar.
— E o senhor faz o que aqui?
— Eu cuido da faxina. No dia das mães e no Natal trabalho dobrado. Gosto do serviço porque estou sempre ocupado com alguma coisa. Se não tem nada pra fazer, eu converso com um, com outro, que assim ajuda a matar o tempo. Já tive emprego que pagava bem, mas ficava parado, o tempo agarrado, igual o de vigia, pensando na vida até não poder mais. Não aguentei e larguei. É por isso que gosto daqui. Na hora que vê, o dia já acabou. Até na minha folga eu venho pra cá. Não tenho amigo, não bebo, não vou a lugar nenhum. Uma vez ou outra, se aparece uma mulherzinha no jeito... Rabicho nunca mais. Levo pra casa, faço o serviço e pronto.
— Quer dizer que acontece muita coisa aqui.
— Se acontece! A Juracy, uma mulher da vida, durante muito tempo apareceu aqui com agrado pra despachar pro filho. Estudou o menino pra médico com o dinheiro que tirava debaixo dos homens.
Eu guardei o jornal na pasta, ele continuou.
— Tem coisa que eu não esqueço. Num dia de muito movimento como hoje, aconteceu uma coisa que vira e mexe eu fico pensando.
Pela pausa que fez pressenti que vinha uma longa história.
— Eu tinha acabado de largar o serviço, não queria ir embora. Desde cedo, sem mais nem menos, sem saber por que, vinha uma ardência do fundo do peito, fui adiando a hora de ir pra casa.
Sentei num banco no fundo e fiquei vendo o movimento. Era um fim de tarde frio e nublado. Eu olhava pra uma pessoa, depois pra outra, imaginando o que podia ir na cabeça de cada um, mania que tenho.
Fiquei nessa distração até que sentou perto uma mulher com um menino de colo. Até estava preparando pra ir embora. Não fui porque eu não queria que ela achasse que eu estava saindo por causa da chegada dela. Eu não gosto que os outros cismam comigo.
Depois que viu meu uniforme pediu informação sobre o ônibus que ia pegar. Eu disse que com a chuva forte que tinha caído, quase todos os horários estavam com atraso, e que a estrada que ela ia pegar devia estar bem fustigada.
A conversa foi espichando. A mulher era uma morena bonita duns olhos vivos. O menino rosado e gordo.
— Ela vinha de longe?— perguntei.
— Vinha, viagem de um dia. Tinha acabado de desembarcar. Ia pegar outro ônibus e descer na roça onde tinha morado até um tempo atrás. Na cidade grande tinha ficado grávida dum rapaz que namorou. Estava levando o menino pros pais conhecer e não aguentava mais esperar a hora de chegar com a criança.
De vez eu quando eu contava pra ela alguma coisa da minha vida, mas não entrava no pormenor. O ônibus dela custava a chegar, a conversa espichava.
Uma hora, levantou e perguntou se eu não ligava de segurar o menino enquanto dava uma chegada no banheiro.
Fiquei sem jeito, um conhecido podia passar, peguei ele assim mesmo.
Dois olhos pretos e grandes. Apertei a criança no peito e senti o calor. Falei umas coisas. De tão novo, nem ria. Não demorou, fez uma careta. A golfada quente escorreu pra minha camisa.
Voltou, devolvi o menino, e pra não perceber o que tinha acontecido, cobri a mancha com a marmita.
O ônibus encostou, eu fui pra casa.
Entrei no quarto, abri a porta do guarda-roupa e fiquei me vendo no espelho, os braços cruzados, segurando o resto do calor que tinha ficado do menino.
Postado por Anchieta Rocha
Em
1/2/2018 às 15h58
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