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Segunda-feira,
19/3/2018
O embate e o embuste
Flávio Sanso
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O embate tem dia, local e horário certos para acontecer. Todos os domingos pela manhã, quem passa por um dos acessos à feira livre assiste a um conflito que já perdura por meses, é bate-boca pesado, duelo de impropérios, arranca rabo digno das óperas-bufa mais estridentes.
Um dos oponentes tem porte atarracado e é comum ser visto portando um pedaço de pano que não aparenta maior utilidade senão a de um símbolo. O outro nunca está sem seu boné vermelho e maltrapilho, também é atarracado, mesmo tamanho, mesmo peso, não há dúvida de que os dois pertenceriam à mesma categoria de qualquer modalidade de luta. Nunca é possível precisar de quem é a iniciativa do imbróglio, mas a coisa sempre começa mais ou menos assim:
– Você sabe que eu preciso trabalhar, tenho uma família pra sustentar, não sou moleque – ao que o outro retruca:
– Então faz o seu trabalho direito, eu também tô trabalhando.
São palavras ditas em exaltação, em tom suficientemente escandaloso para atrair atenções, e a partir disso uma pequena plateia se junta na expectativa de presenciar as vias de fato, nunca há de morrer em cada um de nós o aluno de ginásio useiro e vezeiro em incitar a briga dos colegas no final da aula.
As pessoas dentro de seus carros também são acometidas pela curiosidade irresistível de querer se atualizar sobre as querelas urbanas, diminuem a marcha, passam devagar quase parando, e é aí que os dois criadores de caso deixam de lado a encrenca e partem para abordar os motoristas, oferecendo-lhes as vagas de estacionamento pertencentes aos respectivos territórios que a cada um deles cabe administrar, pedem contribuições, fazem boa grana, exercitam uma dessas invenções a que se deve homenagens pelo contorcionismo mirabolante, alugar pedaços da rua é um jeito muito nosso de empreender com a coisa pública.
Não foi tão surpreendente assim, já havia no ar razões para a suspeita, um trejeito performático aqui, um exagero inverossímil acolá, pois então quem quiser conhecer a verdade é só chegar à feira livre mais cedo do que o de costume, e então, com a rua ainda vazia, lá presenciará o flagrante, os dois flanelinhas estarão absortos numa conversa animada, trocarão gargalhadas desopilantes, coisa de parceiros mesmo, e isso momentos antes de começar a costumeira discussão.
A revolta não é tanto por estar revelado o artifício utilizado para fisgar bisbilhotices. Também não é o caso de se decepcionar com o fogo brando, quase fátuo, que incendeia o circo. O problema é que daqui para diante nem a repugnância, até então essencialmente indisfarçável, está isenta de ser dissimulada.
Texto originalmente publicado no site flaviosanso.com [email protected]
Postado por Flávio Sanso
Em
19/3/2018 às 09h26
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