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Segunda-feira,
2/4/2018
A inexatidão de certas coisas exatas
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
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Desconheço o nome do poeta que discorreu sobre a inexatidão das coisas da vida. Sei, entretanto, ser arte de latino. Somente um poeta latino é capaz de exaltar a inexatidão de certas coisas exatas. Mas afinal, por qual motivo estou divagando sobre isso, aqui sentado na mesa de um bar, esperando a espuma do chope baixar? Tenho o costume de falar comigo mesmo, geralmente coisas sem sentido, inexatas; sempre na primeira pessoa, algo assim: “está vendo só, coisa mais estranha aquela planta tímida que só o vento fecunda...” Um rapaz do braço preto e outro branco passa perto de mim. Reparo melhor, o braço preto na verdade é tatuagem. Por longo tempo me questionei: como pode alguém tatuar um braço inteiro? Morreriam todos os piratas diante daquilo. Mas aconteceu da minha filha tatuar quase o braço inteiro. E olhando de perto, o resultado é até bonito, calando o meu assombro de antes. Enfim o chope acaba. Preciso caminhar, juntar ideias. Inexato coração, inexata ideias. A moça do piercing no nariz, passeando à minha frente, me chama mais a atenção do que o manequim semidesnudo, vestindo bermuda azul, sem camisa e de boné dourado. Ela olha para mim, depois para o manequim. Inexata comparação. Não gosto de piercing no nariz, mas aceito, sem muito reclamar, aquele da bolinha brilhosa no canto dos olhos. Devo mesmo estar ficando velho, admirar piercing, definitivamente não é coisa da minha turma dos cinqüenta anos. O silêncio me abraça novamente e tento esmagá-lo ao caminhar. Às vezes o silêncio grita: inexato silêncio. Tento calar os meus passos e fico um bom tempo contemplando as vitrines de uma loja de turismo. Um quadro exposto na parede, nada mais que um risco de terra, rodeado por um mar profundamente azul, empresta aos meus olhos a luz suficiente para me desarmar de vez. Contemplo, emudeço sonho. A atendente percebe meu deslumbre e sai até a calçada, armada de um catálogo e trazendo aberto um riso de dentes segurados por arames. Outra coisa para estranhar um homem de cinqüenta: como será que o namorado consegue beijá-la? Ou a namorada, enfim... Ela sorri um riso metálico e puxa conversa; “ilha de Capri” diz, apontando para o quadro e a imagem reflete no aparelho em sua boca. Ela completa: “O pacote está baratinho.” Devolvo o sorriso, tento explicar que conheço desde muito tempo a Ilha de Capri, o Mar Tirreno e as diversas ilhas ao redor, mas reluto revelar a verdade inexata dos lugares que habitam a minha mente, porque diversas vezes transformo a vida real em sonhos (sou quase sonhos por completo), só para poder visitar lugares, mantidas as vistas embriagadas pelas belezas do planeta que aprendi nos livros. No final da conversa, ela se convence que sou um eterno viajante, sem desconfiar a verdade concreta, tão exata: nunca coloquei meus pés em outro país. Volto a caminhar, mas o silêncio está distante, golpeado pelo som gostoso dos anos oitenta escapando de uma das lojas, me fazendo revirar a cabeça numa dança de olhos fechados. Fico confuso, nunca soube distinguir Kim Carnes de Bonnie Tayler. Faço confusão também entre Carly Simon e Carole King. De repente, a música some por instantes; do outro lado da calçada, uma moça dos cabelos alourados sorri em minha direção e logo depois faz um aceno de miss. Fico sem jeito, será que foi para mim? Ah, seu eu fosse aquele jovem cabeludo olhando para o celular; colocaria no canto da boca um piercing, preencheria meu braço de tatuagens e devolveria sem medo o aceno. Bette Davis Yes! É a voz da Kim Carnes, concluo e armo no rosto um sorriso. Sinto uma vontade irresistível de tomar outro chope, sentimento tão exato quanto as asas da minha emoção, essa palavra linda a rimar com coração latino; pulsando no ritmo do vento, uma brisa gostosa, outra caneca de chope e a certeza a escapar da luz opaca dos meus olhos; o sorriso não era para mim: gente jovem quase nunca sorri para os mais velhos...
Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
Em
2/4/2018 às 12h21
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