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Segunda-feira,
1/10/2018
A melhor versão shakespeariana de Kurosawa
Tadeu Elias Conrado
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Não fui ao cinema no último final de semana. Embora queira assistir muito do que está em cartaz, não havia tempo. Mas fui ao teatro. Assistir Hamlet, drama de Shakespeare montado pela Armazém Companhia de Teatro. Até então, só havia visto algumas das inúmeras adaptações para o cinema e não fazia ideia que eram versões de obras de Shakespeare, com exceção das que recebiam o nome. Dirigida por Paulo de Moraes e com Patrícia Selonk, Ricardo Martins, Marcos Martins, Lisa Eiras, Jopa Moraes, Isabel Pacheco e Luiz Felipe Leprevost no elenco, o público presente foi apresentado a umas das tramas mais famosas do dramaturgo inglês. Contando com algumas atualizações, muitas vezes cômicas, deixando o espetáculo mais próximo dos dias de hoje.
Há 4 anos, quando Shakespeare completaria 450 anos, surgiram muitas listas de filmes baseados em sua obra. Revi alguns dos filmes com outros olhos, levando em consideração a história original. Em relação a Hamlet, o que mais me chamou atenção foi 'Homem Mau Dorme Bem’ (1960), de Akira Kurosawa. Uma mostra em homenagem ao diretor, que aconteceu no ano seguinte, descobri que a importância do filme vai muito além de uma nova visão da obra de Shakespeare. Acontece que em 1959, com maior visibilidade, Kurosawa fundou sua própria produtora, a Companhia de Produção Kurosawa. ‘Homem Mau Dorme Bem’ foi uma escolha arriscada como primeira produção. Baseado no roteiro de seu sobrinho, Mike Inoue, o filme trazia aspectos políticos e sociais que não faziam parte de seu repertório em longas anteriores.
Relacionar o filme de Kurosawa a Hamlet não é uma tarefa muito difícil. O Príncipe Hamlet busca vingar a morte de seu pai, o Rei Hamlet. Muitas vezes o personagem parece estar dominado pela loucura, mas tudo parece ações falsas, parte de seu plano para investigar e descobrir quem foi o assassino de seu pai. Já em Homem Mau, Koichi Nishi desconfia da versão contada sobre a morte de seu pai, onde dizem que ele se atirou pela janela há cinco anos. Para investigar o caso, ele acaba por se casar com a filha de um grande empresário do Japão, que era dirigente da empresa onde seu pai trabalhava. ficando próximo de seus suspeitos.
Os primeiros 20 minutos do filme é tido como um dos melhores trabalhos de Kurosawa. O casamento de Koichi nos dá pequenas amostras do que vai acontecer durante o filme, mas nada que deixe a história previsível. Embora o restante não acompanhe a maestria do começo, é interessante ver como o diretor trata temas tão censurados no Japão, como a corrupção e assassinato político. Levando em conta a época, enquanto o filme era produzido muitos japoneses, em sua maioria jovens, se rebelavam contra o Tratado de Segurança EUA-Japão, que ameaçaria a democracia e daria mais poder a políticos e corporações. Quando estreou, embora tenha tido uma bilheteria modesta, ‘Homem Mau Dorme Bem’ foi um sucesso da crítica. Sendo uma das melhores versões shakespeariana do diretor, que levou outras obras ao cinema.
É impossível não fazer paralelos com a situação do Brasil, já nos dias de hoje. Se analisarmos com atenção, temos uma democracia ameaçada e o poder está nas mãos de políticos e corporações e aqueles que deveriam trabalhar a favor do povo, fazem o que bem entendem, silenciando quem os contraria. Essa situação virou algo tão comum que nem é preciso citar nomes para que todos saibam sobre o que/quem estou falando. E existem hoje muitos Hamlets e Nishis em busca de vingança. Mas a tragédia real não consegue ser tão romantizada quanto os que vimos na TV ou no palco. É sempre mais cru, obscuro.
No fim de tudo, Hamlet consegue uma falsa vitória. Descobre que seu tio, Claudius, é o assassino de seu pai. Mata ele e todos os personagens, no fim acaba morrendo junto com eles. Já Koichi Nishi, morre em um acidente de carro, mas deixa a dúvida: foi mesmo um acidente, ou alguém o provocou? Enquanto isso, os assassinos de seu pai saem ilesos. As duas histórias chegam ao fim de maneira fria, impiedosa. Isso deixa o espectador desamparado, depois de um convite para entrar em narrativas tão intensas, um final tão desconcertante chega a ser desapontador. Mas nem sempre um príncipe ou um herói encontram o mistificado final feliz. Mas talvez as duas obras tenham como objetivo mostrar a ganância e impunidade que assolava a Dinamarca em 1600, o Japão em 1960 e o mundo inteiro em 2018. E só nos resta indagar: quanto tempo mais levaremos para aprender?
Postado por Tadeu Elias Conrado
Em
1/10/2018 às 21h50
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