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Domingo,
14/10/2018
A santidade do pecado em Padre António Vieira
Ricardo Gessner
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Padre Antônio Vieira (1608 – 1697) nasceu em Lisboa, mas veio ao Brasil com sete anos de idade. Logo ingressou no seminário e, ainda em tenra idade, foi reconhecido pelo seu talento e capacidade de oratória. Sua obra é dividida em três partes: textos proféticos (escritos em latim, sendo a maioria ainda não traduzida ao português); cartas e sermões. Ler os Sermões de Vieira é uma experiência gratificante, principalmente quando livre dos rigores dos vestibulares. E, apesar de originalmente serem textos com finalidade oratória, isso não anula sua força literária. Aliás, muitos dos textos hoje abrangidos pela literatura eram, em suas origens, declamados ou cantados, a exemplo da Ilíada e da Odisseia, de Homero.
Os Sermões são dirigidos a um público variado e abordam temas variados. Dentre os seus mais conhecidos está o “Sermão da Sexagésima”, proferido em 1655. Seu ponto de partida é a indagação sobre o motivo da palavra de Deus, apesar de tantas vezes exposta e divulgada, não produz os efeitos esperados. Seria problema em relação à palavra de Deus? Seria o problema com os ouvintes, que não lhe dão a devida atenção? Ou seria falha dos oradores? Ora, a primeira opção não pode ser, afinal, a palavra de Deus é a Verdade, é absoluta. Também não pode ser a segunda opção, já que se a palavra de Deus não frutifica, pode produzir algum efeito, por mínimo que seja. Resta, então, aos oradores assumirem a responsabilidade. O Sermão aborda, portanto, uma crítica aos próprios oradores missionários, que pregam a palavra de Deus, mas não agem em sua conformidade.
Nos preâmbulos de sua fala, Vieira faz a seguinte afirmação: “Que cousa é a conversão de uma alma senão encontrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessário luz, e é necessário espelho” (p. 140). Considero esta passagem de uma elegância rara, tanto em sua forma expositiva – as metáforas aplicadas de modo certeiro –, quanto em sua mensagem. Em resumo, o que ela diz é: para que a palavra de Deus floresça, são necessários três elementos: olhos (isto é, consciência), luz (sabedoria) e espelho (modelos e padrões). Noutras palavras, cada item representa, respectivamente, um bom ouvinte, a palavra de Deus e um bom pregador.
Mas o que se sobressai são as entrelinhas, principalmente no que está sugerido pela palavra “conversão”. Segundo Vieira, não se trata de uma submissão cega e irrefletida a uma doutrina ou conjunto de preceitos; trata-se, sim, de encontrar Deus dentro de si mesmo.
Santo Agostinho, em suas Confissões, relata que se converteu quando deixou de buscar a Deus no mundo para encontra-lo dentro de si: “Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti”.
Nesses termos, “converter” significa combinar os três elementos num ato de introspecção: voltar-se para si mesmo e (re)conhecer-se limitado, perfectível, pecador. É reconhecer que a natureza humana, antes de mais nada, é falha. Ninguém é perfeito, pasmem; e nunca seremos.
Ao contrário do que se pensa, há mais santidade no pecado do que na pureza. Não significa, de modo algum, que santo é um virtuose na prática da luxúria, da avareza ou da ira; o santo, na verdade, é aquele que compreende a natureza do pecado e, sabendo-se fraco, assume a possibilidade de sucumbir, apesar de seus esforços.
Independentemente de fé ou religião, ler Antônio Vieira é gratificante. Além de ser uma experiência intelectualmente interessante, seus textos são brechas para observar as profundezas da alma humana. Um bom autor é aquele que capta a natureza humana, seja em sua bestialidade ou em sua santidade, e nos coloca defronte. Literatura é isso, um meio de conversão. Não necessariamente religiosa ou doutrinária, mas uma oportunidade para convergir para dentro de si, vasculhar a besta que nos habita e encará-la nos olhos.
Postado por Ricardo Gessner
Em
14/10/2018 às 11h42
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