Noel Rosa, cognominado "o filósofo do samba", recebeu, post mortem, o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, por suas composições musicais. Chico Buarque de Holanda, a seu turno, foi o vencedor do Prêmio Camões que equivale ao Nobel, só que da literatura dos países lusófonos.
São dois gênios, um já falecido, o outro não. As composições de ambos são em verdade clássicos da música popular brasileira e os clássicos, como se sabe, não têm idade, jamais envelhecem.
Isto, porém, não sucede com os autores sobre os quais incide a ação devastadora do tempo.
Chico Buarque de Holanda, agora idoso, parece que já se encontra contaminado pela proximidade do fim. E veio construindo, pouco a pouco, em largos intervalos, quatro composições musicais que vieram a constituir o que chamei de tetralogia buarqueana.
Na primeira dessas músicas, "Hoje é dia de visita", ele visualiza a pré-morte. Trata-se de um personagem que, sofrendo de Alzheimer, pensa que todo domingo chega uma moça toda linda para vê-lo. Ele imagina que foi muitas coisas importantes na vida e há um refrão recorrente: ”veio a vida e me levou”.
E no desfecho ele murmura: hoje não tive visita, acho que não tive almoço, acho que o moço nem me lavou, acho que esqueci o meu nome, acho que tudo acabou...
Na segunda, "Nina", é a morte metafórica, ilustrada na expressão - fecho os olhos e tomo alguma vodca e vou”...
Na terceira, "Tua cantiga" ele fala expressamente na morte, ao escrever - quando o nosso tempo passar ... e eu não estiver mais aqui, lembra-te minha nega dessa cantiga que fiz pra ti.
Na quarta música "A moça dos Sonhos" é o pós-morte que Chico focaliza, escrevendo: Há de haver algum lugar num remoto casarão onde os sonhos serão verdade e a vida não...Se eu pudesse achar ali meu amor, não voltava jamais...
São todas elas músicas e letras maravilhosas, lindíssimas. Profundas, de um quase delírio de clarividência e de lucidez.
Essa, a marca matricial, com o timbre da genialidade de um Chico Buarque m plena floração como na juventude. Sob tal prisma, por assim dizer, Chico, já um senhor de idade, rejuvenesceu.
Ayrton Pereira da Silva