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Sábado,
13/11/2021
Três apitos
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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“Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você [...]”.
Noël Rosa
Você duvida? Nos arredores de Vila Isabel, o poeta inscreveu o mundo de ontem. E o de hoje. Noël Rosa registrou na poesia o cenário do fordismo que, em Tempos Modernos, Chaplin satirizaria ao enfocar a desumanização do homem pela máquina. Em julho de 2019, guiando-me na visita ao prédio da antiga fábrica de tecidos, e sempre brincalhão, Seo Armindo observou: “Ora, pois, que acabamos de passar pelo gerente impertinente! Que carranca, pá!” Em "Três apitos", não escapara a Noël a figura do gerente alienado − espécie de guarda-da-esquina − que fiscalizava o trabalho.
Dizem os estudiosos que a namorada de Noël trabalhava numa fábrica de botões. Mas poesia inventa realidades que se bastam a si mesmas. Fosse indústria de salsichas, de botões ou tamancos, nosso apaixonado Noël captaria com perfeição a voracidade do capital contrapondo-se ao afeto. A poesia tem mil olhos. Cadê que ela deixa escapar alguma coisa!
Poema revisitado, aonde vais? Meu olhar te acompanha. E à escuta da canção de Noël, meus olhos enxergam o amor desenrolando-se dos fios de algodão:
“Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você.”
Transformada a fábrica em centro comercial nos idos 1980, o apito tocava às 17 horas, como atração turística. Um ano antes da COVID-19, não mais o apito. Entanto, rememorando Nöel, meus ouvidos reverteram o tempo. Fios e mais fios reunidos na trama expelida pela máquina; meu pensamento emaranhado nos braços movimentando-se na luta contra o cansaço e a fome. E, naquele dia frio em 2019, era também de carne e osso a moça descalça, parada em frente ao supermercado: imagem que, numa hipérbole, lembrava a jovem na canção:
“Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho [...]”
Entre as duas cenas, outras imagens emergiam naquele prédio. Imagem puxava imaginação e ideia. Nos arredores do quarteirão, meus ouvidos atentos à nostalgia poética ouviam a buzina do carro de Noël, querendo abafar o som que lhe feria os ouvidos e o amor. Você duvida? Em Vila Isabel, o poeta juntou fragmentos do seu tempo e de um futuro, que, em parte, se desenhava na pobreza. Trabalho precário. Desemprego. Miséria.
E, neste escrito, a poesia de Nöel atravessa o antigo cenário, ansiosa para chegar aonde não é chamada.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
13/11/2021 às 17h27
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