BLOGS
>>> Posts
Segunda-feira,
15/11/2021
A Lei de Murici
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
+ de 12000 Acessos
“Em tempos de murici,
cada um cuida de si.”
No jargão popular, Murici virou nome de uma lei. Entanto, palavras e adágios pulam os muros dos dicionários e enciclopédias e a etimologia se perde nas precisas imprecisões da linguagem do povo, construindo e desconstruindo significados, o que faz a gente entender que a fala desvela uma filosofia do cotidiano. Esse dito popular aponta para vários lados de uma sabença capaz de alertar quanto aos dois lados da moeda: constatação e reflexão sobre o salve-se quem puder, abrindo sentidos da vida e ressonando de forma diversa nas várias classes sociais.
Aliás, é sempre assim. A linguagem pede interpretações. Se alguém da classe A disser: “estou com fome,” de imediato terá à sua frente lauto banquete. Se um morador de rua disser a mesma frase, o sentido muda e pode até indicar que está morrendo de fome.
Já conhecido em Portugal, e citado no século XVI por Gabriel Soares de Souza, tal adágio, aqui posicionado como epígrafe, fincou pé no Nordeste brasileiro, onde o fruto, o murici, aparece após o tempo das chuvas. João Ribeiro, tentando explicar o folclore pelo difusionismo dos antropólogos, atribuiu a origem do dito ao nome “murixi” ou “morexi” – o cólera − terrível epidemia que matava populações na Índia, onde os lusos iam à cata de especiarias. Assim, podem ter surgido corruptela e metáfora!
Visitando cenas de Os Sertões, encontrei referências de Euclides da Cunha a esse dito do povo. Afirma o autor que, após a morte do Cel. Moreira César na terceira expedição de Canudos, o Cel. Pedro Nunes Tamarindo, temendo ser morto, teria invocado tal adágio ao recusar-se a assumir o comando das tropas do governo. Uma vez salva sua pele, a tropa − o povão − que cuidasse de si.
Tempo vai. Tempo vem. Chuva miúda não mata ninguém. E a frutinha amarela deu nome à lei e o nome da lei virou sonoridade ao entrar no samba de vários autores, entre eles Juraci e Bezerra da Silva, ensinando como sobreviver em meio à malandragem.
Na internet há quem afirme que, em tempos de seca, só o muricizeiro retém água e permanece dando frutos: “Quando apenas a frutinha murici (tempo de murici) sobrevive é tempo de cada um cuidar de si, uma vez que, se só sobrou o murici, a coisa está feia. ”
Tempo vai, tempo vem, estamos em maus lençóis. A norma chamada popularmente Lei de Murici parece ter virado Medida Provisória nos últimos tempos, estendendo-se aos danos da Covid-19. Desdobrando o dito popular, eu diria: em tempos de mercado financeiro, não sobrevive nem muricizeiro.
Diante disso, Lima Barreto teria muito a acrescentar às histórias dos bruzundangas. Solidariedade? Farinha pouca, meu pirão primeiro. Pandemia? Todo mundo vai mesmo morrer um dia. Vacina? Cada um que se contamine e siga o rebanho dos mortos. Emprego pra quê? Vagabundo não gosta de trabalhar, afirmam os jogadores da bolsa.
Assim, como grande parte dos dizeres do povo, o adágio em pauta conduz sabença capaz de alertar para a riqueza da fala, escavando sentidos escondidos no fundo das verdades não verdadeiras. Ditos e adágios são feito poesia: suas palavras e imagens viram o mundo de cabeça pra baixo. E a linguagem pode tornar-se ato, dando novo sentido à vida e outro rumo à existência.
Dizem que “boi não sabe a força que tem”. Mas esse ditado pode significar muito mais: Ah! Mas se o boi descobre a força que tem! Por isso, na perspectiva poética, se, ante as dificuldades, cada um tem que cuidar de si, a fala também alcança aqueles que querem revogar a Lei de Murici.
Linguagem é isso: ontogênese. Quando menos se espera, um dito pode ressurgir trazendo antigas e novas ideias e também preciosas contradições que podem virar a mesa.
Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
Em
15/11/2021 às 08h59
Ative seu Blog no Digestivo Cultural!
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|