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Domingo,
23/10/2022
Penso, logo minhas contas estão pagas
Ricardo Gessner
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Recentemente, logo na abertura de um programa de entrevista, a apresentadora fez uma pergunta ao seu convidado (um arquiteto, se não me engano) formulada mais ou menos nestes termos: “Nesses últimos tempos, o pensamento sobre a existência nunca foi tão necessário...”. Não me lembro o restante da questão, pois logo me peguei refletindo sobre tais palavras.
Com “nesses últimos tempos”, a apresentadora se referia à pandemia de 2020, e “pensar sobre a existência”, a certa tendência de refletir sobre a vida diante do cenário caótico pelo qual o Brasil ainda passa. No entanto, pensar sobre a existência nunca foi necessário; e, nos tempos atuais, pensar sobre a existência nunca foi tão supérfluo.
Lembro-me de quando a pandemia começara a se espalhar pelo Brasil e grande parte dos governos orientavam a permanência de todos em casa, permitindo somente a abertura de serviços essenciais, pulularam vídeos e textos por aí, sugerindo para que as pessoas aproveitassem o momento e refletissem mais sobre a vida; para que pensassem sobre o que era, de fato, essencial ou não e, indiretamente, para que pensassem sobre a existência.
Entretanto, isso foi possível àquele que saberia que no final do mês teria seu salário depositado, que teria o aluguel pago e todas as contas em dia. Enquanto isso, grande parte das pessoas que, junto com a pandemia, perderam sua principal fonte de renda, preocuparam-se mais com as contas a pagar do que com existencialismos. Com isso, creio que aqueles que se preocuparam com as contas para pagar vivenciaram de maneira mais plena uma experiência existencial, do que uns poucos, isolados em seus apartamentos, gravando lives e exibindo suas estantes de livros, louvando a prática de ioga e alimentação saudável, tiveram.
O filósofo Miguel de Unamuno, nas páginas iniciais de sua opera magna, O sentimento trágico da vida, argumenta na mesma direção. O homem começou a se preocupar com a existência a partir do momento em que sua sobrevivência estava garantida. Somente é possível ser existencialista quando se tem um teto, contas em dia e barriga cheia, do contrário, o instinto da sobrevivência fala mais alto. Portanto, ser existencialista no Brasil é ostentação; discutir a pobreza, a desigualdade e a inclusão de diferentes vozes no campo cultural, também. Isso não é ruim; ao contrário, é excelente ostentar discussões filosóficas, principalmente em um país que cumpriu o básico e permite seus habitantes ostentarem inteligência e toda a educação que receberam.
Não quero fazer apologia à pobreza ou desconstruir paradigmas. Ao contrário, espero que um dia o Brasil seja o centro de criadores de paradigmas: de pensadores da existência, de poetas que saibam fazer poesia, de músicos que saibam o que são notas musicais. Isso pressupõe um país que conquistou o básico: saúde, educação e segurança. Acreditarei em alguma reforma educacional quando o pedagogo disser que “essa teoria foi criada no Brasil e funcionou tão bem que será adotada em escolas da Finlandia”, não o contrário. Mas, por ora, a sobrevivência, fala mais alto: discutimos pronomes neutros enquanto a maioria esmagadora da população não consegue interpretar um texto ou nem sequer sabe o que são pronomes e sua aplicação.
Existe um abismo entre pensar e viver. Sei que a frase é piegas. Por isso falei, linhas acima, que os indivíduos que se preocupam com as contas atrasadas vivem o existencialismo sem saber o que é isso: sentem na pele a dor e o peso do que significa sobreviver, enquanto que apresentadores de televisão pensam existencialismo ou, no máximo, se preocupam com isso, mas não vivem e, portanto, não sabem ou se esqueceram do que é isso na realidade.
Conhecer sistemas de pensamentos filosófico é sedutor. Dominar seus conceitos e acumular conhecimento abstrato, também. E não posso desmerecer o trabalho que é elaborá-los, assim como compreendê-los. No entanto, ser um erudito da existência é mais fácil do que viver a existência; por isso, permito-me a desconfiança em relação ao teórico, ao menos nesse tema. Ademais, um pensamento filosófico existencialista não necessariamente garante um enfrentamento da existência. Não raro, o resultado prático é o oposto: tal sistema de abstração serve mais como fuga do que enfrentamento.
É o que Nelson Rodrigues falava sobre a “esquerda caviar”, isto é, gente que discute a pobreza enquanto toma vinho chileno durante um jantar em algum bairro nobre do centro urbano. É fácil ser desapegado quando se tem o que desapegar. O que também não justifica a truculência e ignorância do que hoje chamo de a “direita churrasqueira”.
Por essas e outras, reitero os versos de Alberto Caiero: “... Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor. / Mas abre os olhos e vê o sol, / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas”. Se o pensamento sobre a existência nunca foi tão necessário, então pergunte àquele que vive a existência, seja lá o que isso signifique.
Postado por Ricardo Gessner
Em
23/10/2022 às 22h49
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