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Quarta-feira,
8/2/2023
Esquartejar sem matar
Raul Almeida
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O titulo sugere uma cena medieval, um castigo pavoroso imposto a seres humanos cujos crimes abomináveis, precisavam ser punidos com requintes de maldade absurda. Não bastava a simples execução, por si só execrável, mas a retribuição da barbárie com muito mais barbárie?
Não é bem assim. Não se trata disso.
Trata-se do desmembramento de uma biblioteca, ou melhor, dos já minguados despojos de uma, outrora, pequena mas muito querida biblioteca.
Desde criança, convivi com estantes cheias de livros de diferentes assuntos. Dúzias, centenas, pilhas acumuladas por falta de lugar. Não fui um exemplo de aluno. Os livros escolares nunca tiveram a importância que seus parentes, aqueles colecionados lidos, relidos, guardados com carinho e reverência que o meu avô tinha com os dele. Mesmo assim, aproveitei bastante aquela biblioteca variada. Enciclopédias, livros de arte com ilustrações primorosas, livros antigos, raros, estes poucos. Romances, poesia, clássicos, enfim, Jules Verne, Pitigrilli, Platão, Suetônio, Bilac, Alberto de Oliveira, Machado de Assis, Conan Doyle.
A vida seguiu, saí de casa bem jovem, me casei, meu avô morreu e recebi aquele patrimônio fantástico, maravilhoso, um tanto volumoso, para minha alegria e responsabilidade. Não foi fácil.
Meu pai também era um acumulador de livros. Curioso e cuidadoso, reuniu umas duas centenas de livros bem cuidados, encapados, limpos e com anotações em separado. A hora dele também chegou e mais um bom lote de maravilhosos livros abrigou-se comigo.
Aos oitenta anos não há mais aquela energia bibliófila no ar. O pessoal é moderno, prático, pragmático,sei lá. Em conversas cordiais,percebemos que: - “agora tem tudo na Internet” é só procurar e está lá! E os livros eletrônicos, que maravilha. Pode-se ler pelo handy, ou celular, ou cellphone.
Olho para a estante entulhada de cultura, história, conhecimento, diversão, passado, momentos, saudade. Pego um livro antigo e vejo um ex-libris do meu avô. Pego um outro e lá está um ex-libris do meu pai. Lembro quando aprendi o que era um ex-libris. Para quem não sabe, ora, vá na Internet, lá tem tudo.
Não tenho mais como manter as pilhas de livros. Não tenho mais como armazenar, avaramente todo o saber ali acumulado e não absorvido. Preciso começar a lançar a carga ao mar. Preciso aliviar o peso das futuras sobras da vida. Preciso me desapegar do passado.
Separei alguns volumes para descarte. Leia-se como descarte, doação, “presente”, abertura de espaço. Fiz uma pilha no corredor, tirei alguns, botei outros.
Do sofá onde estou sentado fiquei observando.Que tristeza. Livros não morrem. São eternos. Livros são assassinados sem dar um pio. São maltratados, insultados, agredidos, segregados, esquartejados sem serem mortos primeiro. Uma página desmembrada, arrancada, solta, com uma poesia ou prosa continua transmitindo emoção ou nacos de cultura. Um Bilac do princípio do século passado, velho, encardido, meio mambembe pelo tempo de vida, assim como nós, está cheio de maravilhas. Um Machado de Assis velhinho, com as capas da brochura quase caindo, provoca as mesmas sensações de uma edição mais recente.
Um livro não morre. Quando a gente aprende amá-los, a conviver com eles, a sentir sua alegria ao serem consultados e lidos por prazer, a perceber o ato lúdico de folhear, reler, até escrever uma dedicatória, fica muito difícil racionalizar a dissolução de uma biblioteca.
Esquartejar sem matar. Dissolver uma relação , muitas vezes ciumenta, com esses amigos perenes pode parecer uma bobagem. Um exagero, quem sabe.
Não importa.
Livros são imortais até que a ignorância, a estupidez, o modismo ou, infelizmente, a necessidade, mude os cânones da existência.
Pesar sem luto.
Adeus amigos
Postado por Raul Almeida
Em
8/2/2023 às 10h43
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