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Sexta-feira,
12/5/2023
Júlia
Anchieta Rocha
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No meu primeiro ano de faculdade, fui lecionar em um colégio noturno que fazia parte de uma associação de ensino sem fins lucrativos e que usava as instalações de uma escola pública.
Numa tarde em que eu estava de um jeito que não sabia se valia a pena viver, entrei na biblioteca da faculdade, fui à seção de literatura brasileira, peguei um livro do Vinícius de Morais, passei em casa, tomei banho e fui dar aula.
Fiz a chamada, parei em frente da turma, li o poema.
Júlia se sentava na primeira carteira.
Eu te peço perdão por te amar
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Li com uma emoção que desconhecia em mim. Quando terminei a leitura, pedi aos alunos que escrevessem o que quisessem sobre o que eu tinha acabado de ler. Percebi que Júlia chorava. Fui pra porta da sala e fiquei olhando pro pátio.
Depois de algum tempo tive que deixar o colégio, o que ganhava não dava pra nada. Uma semana antes de sair, falei da decisão com meus alunos.
No último dia na escola, me despedi das turmas. Quando acabei de dar a última aula da noite, que caminhava pra sala dos professores, Júlia me alcançou no corredor, enfiou a mão na bolsa e me entregando um envelope pediu que só o abrisse quando eu estivesse longe.
Professor Marcos,
Durante meses em que fui sua aluna, você sempre se dirigia a mm do mesmo modo que se dirigia aos meus colegas de turma. No início, nada de especial chamava a minha atenção. Com o passar do tempo, um sentimento começou a tomar conta de mim. Observava que depois que passava uma tarefa – a voz tranquila, as mãos num ritmo suave —,você se assentava e seus olhos se distanciavam. Tão logo os meus colegas curvavam sobre seus cadernos, eu o observava. Com o passar do tempo a minha contemplação aumentava. Sem que percebesse, eu invadia os seus olhos e sentia que neles se escondiam inquietação e doçura. No dia em que leu o poema do Vinícius, eles chegaram diferentes e a bobona aqui chorou. Ao pedir que fizéssemos a tarefa, eles se arrastavam. Ilusão ou os meus embaçados? Escrevi esta carta na noite em que falou que ia nos deixar. Quero que seja feliz porque muito fui pelas “horas que passei à sombra dos teus gestos”.
Júlia
Postado por Anchieta Rocha
Em
12/5/2023 às 18h57
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