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Terça-feira,
19/9/2023
CHUVA
Diana Guenzburger
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Eduardo abriu a porta de casa, esfregou a sola dos sapatos no tapete da soleira, sacudiu o guarda-chuva do lado de fora e entrou. Depois de pousar o guarda-chuva aberto no chão para secar, suspirou aliviado. Que bom ter conseguido chegar sem maiores incidentes, pensou. Chuva desse porte no Rio de Janeiro é sempre sinal de perigo. Não é à toa que a prefeitura colocou a cidade em alerta. Dirigiu-se à cozinha da pequena casa de vila e procurou a garrafa de cachaça, aberta na véspera. Estou bem necessitado de uns goles, depois dessa viagem de ônibus de duas horas, espadanando água das poças. Motorista bom, podia não ter chegado até aqui, com as ruas esburacadas desse subúrbio. Mas chegou.
A bebida forte esquentou-o por dentro e trouxe uma sensação de alento. Sentou no sofá e ligou a televisão, preparando-se para assistir o jogo decisivo para o título do campeonato carioca. Depois dos habituais comerciais, porém, o locutor anunciou: jogo cancelado. A chuva havia deixado o gramado impraticável.
Eduardo tentou afogar a decepção com mais meio copo de cachaça. Remoeu a crescente irritação desfilando na mente as inúmeras desculpas e explicações para o excesso de chuvas ocorrido nos últimos meses. Meteorologistas e outros cientistas das mais variadas especialidades eram chamados aos canais de TV para oferecerem suas versões para o fenômeno. La Niña, dizia um deles. Errado, dizia outro, trata-se com certeza de El Niño. Aquecimento global, afirmava um terceiro. Efeito estufa. A água do mar esquentara e isso criava muito mais nuvens, pela evaporação. O fato é que não se entendiam e a chuva continuava.
Telefonou para o celular da namorada Sueli, que atendeu mal-humorada. Estava presa numa estação do BRT, o ônibus não chegava e a água continuava a subir. Combinaram um encontro no dia seguinte, se o tempo melhorasse. Com mais nada para fazer, foi dormir, ouvindo o pingar monótono pela janela.
Acordou tarde no dia seguinte, era sábado. A chuva amainara, e algumas nesgas de céu azul podiam ser vistas entre nuvens cinzentas. Mais animado, programou-se para uma ida ao supermercado. Na semana anterior fora impedido de ir devido à forte chuva. Havia inclusive rumores de desabastecimento, estradas danificadas pelas enxurradas impediam a chegada de mercadorias. Paciência, compraria o que encontrasse.
A empreitada revelou-se quase heroica, horas de espera pelo ônibus, passagem por ruas alagadas com água até os joelhos. Afinal, conseguiu voltar para casa com alguns poucos produtos essenciais, café, arroz, macarrão, nada de perecíveis. Não encontrara tampouco cachaça, que pena, a sua estava no fim. A chuva havia recomeçado com força, e ele chegou em casa encharcado.
Depois de um banho quente, ligou a televisão. O noticiário estava cheio de imagens de deslizamentos de morros, casas construídas em locais de risco desabando. Bombeiros cavavam a lama à procura de mortos. Deprimido, desligou e tentou falar com Sueli. Atendeu a secretária eletrônica. Foi para a cozinha, preparou macarrão, e comeu com uma lata de sardinhas que ainda encontrou no armário.
O barulho da chuva forte continuava pela tarde. Tentou passar o tempo relendo um livro policial de sua coleção; no entanto, não conseguiu concentrar-se. Lá pelas cinco horas, ouviu a campainha tocar. Depois de espiar pelo olho mágico, abriu a porta: era Sueli. Encharcada, o cabelo e as roupas pingavam água. O vento carregou meu guarda-chuva, explicou. Abraçaram-se forte, um aperto prolongado. Estavam ficando com medo.
Não havia muito a fazer a não ser olhar a chuva pela janela ou ver televisão. A programação normal dos canais era constantemente interrompida por notícias das enchentes. Não só as comunidades carentes estavam sendo prejudicadas: bairros abastados da cidade também sofriam as consequências das chuvas. A lagoa transbordara e inundara as ruas vizinhas; garagens de prédios de luxo ficaram alagadas, carros flutuavam dentro. A ressaca avançara pelas avenidas da orla marítima, que se encheram de espuma do mar.
Eduardo e Sueli ficaram em casa, não havia como sair mais. Cozinhavam os poucos alimentos que ainda restavam, ouviam o barulho da água caindo e das trovoadas. Sueli, religiosa, colocou uma pequena imagem de Nossa Senhora de Aparecida, que trazia sempre na bolsa, numa prateleira da estante. Postava-se em frente e orava, as mãos em prece. Vem rezar também, Dudu, chamava. Agora, só se Deus ajudar. O namorado, cético, resistia.
Passaram assim o fim de semana. Segunda feira, desistiram de ir trabalhar, não havia ônibus mesmo. A TV transmitia também notícias de canais internacionais. Parece que o mundo todo estava sendo afetado pelas chuvas. As ruas de Nova York estavam inundadas; o rio Mississipi transbordara e alagara as cidades e planície ao redor. Na Europa, rios transbordavam, morros desabavam. Em lugar algum havia sinais de estiagem, a chuva só engrossava. As autoridades pediam calma, mas não conseguiam atender aos milhões de desabrigados.
Lá pelo meio da semana, quando assistiam televisão no começo da noite, ouviram um estrondo e todas as luzes se apagaram. Deve ser a subestação de eletricidade que explodiu, calculou Eduardo. A vizinhança toda ficou no escuro, e agora, também, sem informação.
Pouco depois, ouviram um barulho forte de correnteza, parecia que a rua tinha virado um rio caudaloso. Perceberam que a água começava a entrar por debaixo da porta.
Postado por Diana Guenzburger
Em
19/9/2023 às 17h51
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