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Sexta-feira,
17/11/2023
No meu tempo
Raul Almeida
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A nostalgia do freguês da cadeira ao lado, quase mereceu uma resposta. Mas preferi escutar silente, entreolhando o fígaro pelo espelho e a revista que me dera para assuntar, enquanto aparava o que sobrou dos meus cabelos.
O assunto era a qualidade de vida e o tema recorrente o calor siderúrgico que anda tirando o sossego de todos. Velhos ou moços ressentidos sem poupar adjetivos nem sempre gentis, para a natureza, o governo, a prefeitura, os pobres, os ricos, enfim, culpando a todos.
A moda é reclamar das “mudanças climáticas”, causadas pela mão dos homens, que desmatam, se reproduzem como marsupiais ou não cuidam dos seus entornos, da sua área, do espaço que ocupam neste mundão de D’us.
Conversa de salão de barbeiro sempre contempla as atualidades da vida em geral. O clima tem sido destaque. O outro freguês estava imerso na ilusão de que seu passado foi melhor do que o presente no qual todos vivemos, e que os jovens jamais terão a possibilidade de usufruir das saudosas delícias.
Fiquei pensando: Onda de calor? Aqui nunca foi novidade
No meu tempo... O transporte sempre foi coletivo, para a maior parte da população. Automóveis e motocicletas atravancando-se como piolhos, é coisa quase que recente. Ficou fácil adquirir um carro ou uma motocicleta em dezenas de prestações, e reclamar da falta de lugar para estacionar ou do preço do combustível.
No meu tempo, ah no meu tempo…
Bonde, ônibus, trem, lotação. O táxi sempre foi para poucos ou para necessidades especiais. Era coisa de gente com um troquinho a mais no bolso. Até aí, sem novidades. Nas horas de movimento todos os meios ficavam entupidos de gente, pendurada até do lado de fora, caso dos bondes. Os assentos eram, originalmente, duros! Madeira! Só com a vinda dos ônibus americanos, na década de 1950, é que o estofamento apareceu. E o ar condicionado? Seria considerado doido quem imaginasse, um dia, ônibus obrigados a ter ar condicionado em todas as linhas, fossem os bairros menos bonitos ou ricos.
No meu tempo, nem hospital tinha refrigeração mecânica como hoje.
Ar condicionado em agência de banco, só em algumas poucas e bancos estrangeiros. Ar condicionado em cinema! Ora, ora, pouquíssimos tinham tal oferta.
No meu tempo, as salas de aula em colégios pagos ou públicos, tinham janelas. E ponto final.
Merenda escolar gratuita nas escolas públicas? Nunca vi. A cantina, vendia refrigerantes e sanduíches para quem pudesse pagar. Os alunos levavam merenda para comer na hora do recreio. E ninguém ficava fazendo barulho, reclamando, agitando por conta disso.
Vale-transporte, vale refeição, semana de cinco dias. Pura ficção. Os bancos funcionavam aos sábados, até ao meio-dia.
Que “meu tempo” era esse?
Imagine ser possível trabalhar com um sapato de pano, um tênis. Só praticantes do Tênis, elegante "sport”, usavam o tal calçado. Acabada a partida, trocavam o uniforme, incluindo aí os sapatos.
No meu tempo não havia tolerância com a descompostura ao trajar-se para ir trabalhar. Paletó e calça era a roupa-padrão para homens não miseráveis. Um traje discreto, mais barato ou médio, mais caro, sob medida, etc. variando com a categoria de quem o estivesse usando. Uniformes profissionais para militares, policiais e alguns profissionais específicos.
No meu tempo, quem podia usava cambraia de linho, tropical pitex, shantung de seda. Quem não podia usava outros tecidos menos nobres. Mas sempre de paletó, camisa de abotoar, mangas compridas, e gravata! As mulheres caprichavam nos modelos, costumes, sapatos, bolsas e carteiras…
Ah, no meu tempo…
Um calor senegalês, um transporte terrível, um desconforto brutal que ninguém notava.
Era assim naquele tempo… Muito pior? Nem sim nem não. Era apenas “naquele tempo”. Daí a entender que as coisas pioraram a ponto de lamentar-se por tudo, há um oceano de argumentos e verdades menores a considerar.
No meu tempo ninguém reclamava o que não conhecia. A liberdade, a racionalidade, a mudança nos hábitos e costumes, a comunicação hiperveloz, que nos mostra o mundo inteiro com todos os seus continentes, suas cores, suas gentes, seus absurdos e suas maravilhas.
Ainda bem que estamos testemunhando os novos tempos. É o que temos que fazer.Testemunhar enquanto for nosso destino.
No meu tempo… Oooops. Meu tempo é agora.
Postado por Raul Almeida
Em
17/11/2023 às 11h01
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