A série veiculada pela Netflix neste novembro, “Toda luz que não podemos ver” (Direção de Shawn Levy), poderia ser, como tantas outras produções, sobre a vida em um mundo mergulhado na guerra, mas esse mundo, ou o que seria sua ambientação histórica, a invasão nazista da França na Segunda Guerra Mundial é, na verdade, apenas seu cenário, parte de sua mise-en-scène.
A série mostra a história de dois jovens em meio ao conflito. A francesa Marie (Aria Mia Loberti) e o alemão Werner ( Louis Hofmann ) estão em lados opostos da Guerra na cidade francesa de Saint-Malo .
Ela é uma jovem cega que faz transmissões de rádio clandestinas para avisar os bombardeiros aliados as posições alemãs. Ele é um jovem soldado alemão encarregado de vigiar as radiocomunicações da resistência francesa.
Marie utiliza o mesmo rádio que seu tio Etienne, “o professor” (Hugh Laurie ), usava antes da Guerra para suas transmissões. Werner, desde garoto um perito em rádios e que por isso se destacou militarmente, sempre ouviu na Alemanha a mesma frequência que o tio de Marie utilizava.
Separados pela guerra, o rádio os aproxima. Mas eles não se conhecem. Werner foi órfão e Marie, até a chegada das tropas alemãs, vivia uma vida feliz com seu pai, Daniel (Mark Ruffalo ), um funcionário de museu em Paris.
O drama está pronto. Está? Não, tudo isso se dá na série em meio à representação da invasão, mas o modo como é mostrado esse momento histórico o reduz quase que apenas a um pano de fundo em CGI (Imagens Geradas por Computador).
É claro que não se trata apenas da antiga discussão de que a ficção não tem obrigação de representar a realidade. Mas representações estéticas têm seu poder de persuasão.
Se assim não fosse, estaríamos negando toda a história da representação cinematográfica da política, dos conflitos, das guerras. Essas representações foram não apenas instrumento de entretenimento, mas, como se sabe, de deliberada propaganda.
Há centenas de filmes e séries sobre a Segunda Guerra . Alguns utilizam programaticamente o cenário e os contextos históricos para os mais diversos propósitos. Os mais frequentes desses motivos utilizados talvez sejam o amor, a dor e a esperança.
As representações imagéticas mostram esses motivos em conjunto com a ambientação história das mais diversas maneiras. Algumas exibem esses temas se relacionando com o contexto da realidade, tomando-o como elemento decisivo (“A ponte do Rio Kwai”, toma a dor, a resistência e a esperança dentro de um campo de prisioneiros), outras tratam essa ambientação como elemento influente, mas um tanto distante (“Casablanca” toma o amor impossível em uma cidade ainda possível).
Cartaz de "A ponte do Rio Kwai" (1957), de David Lean
E outras, bem..., outras se utilizam dos vários arquétipos da ficção para aparentar tratarem de um tema sério, mas que pode ser sentido apenas sintonizando uma frequência de paixão.
A série da Netflix parece se prender muito mais nessa frequência mais palatável da sensibilidade. Ela foi anunciada (com o grande reforço das mídias) como uma produção que trata sobre o nazismo (ou, pelo menos, sobre a ocupação nazista), mas sua estética emoldura esse tema histórico e dentro desse quadro emoldurado o seu relevo praticamente se perde.
A decisiva tomada da França , como triunfo e vingança; o avanço das forças alemãs em direção à Inglaterra; a fuga desesperada de milhões de pessoas e o terror nas cidades, por exemplo, surgem mais como algo que passa – e apenas passa – pela intriga central (os dois jovens) do que como algo que com essa intriga esteja indissoluvelmente ligada.
Não é que a invasão alemã, as separações de pessoas e a violência não sejam importantes na série. É que isso parece surgir como algo circunstancial, não como seu núcleo gerador da trama. Retire a caçada à pedra preciosa com poderes mágicos da série e... voilà! você entenderá do que estou falando.
“Mas esse tom histórico não era o propósito da série”, alguém pode argumentar, com algum grau de razão. Mas pode-se responder que, se esse não era o propósito, então a série poderia figurar em qualquer outro contexto, ou pretexto, correto?
A batalha da França. Fonte: commons.wikimedia.org
E aí está exatamente o ponto central. O núcleo de um drama quando obedece a certos padrões estéticos estanques, como bom e mal, inocência e bravura, vítima e algoz, ignomínia e honra, caracterizados e demarcados, ou sintonizados exatamente como um número de uma frequência de rádio, tende a não fornecer imagens que possam ir além da estrutura predominantemente sentimental do drama.
É conhecida, por exemplo, a argumentação de historiadores que apontam que se esperava por parte das forças francesas maior resistência, como fizeram os poloneses. Também se argumenta que a resistência francesa só se tornou efetiva após 1943, quando se percebeu que os aliados poderiam realmente ganhar a Guerra (Max Hastings, “Inferno: o mundo em guerra”).
Na série, essa figura da resistência é mostrada através do tio Etienne. Ele é de longe o melhor personagem da produção. Como um ex-combatente traumatizado da Primeira Guerra, ele vive solitário e triste, mas, com a chegada dos aliados, se dispõe a lutar e tem em sua sobrinha Marie sua seguidora.
Mas o colaboracionismo francês é visto através de uma mulher que dorme com o vilão alemão, o sargento Reinhold von Rumpel (Lars Eidinger).
Já o Governo de Vichy , o colaborador oficial dos nazistas, que teve como representante maior o General Pétain, aquele que foi ao rádio pedir para que os franceses parassem de lutar, nem sequer aparece na minissérie.
Mocinhos e vilões precisamente demarcados são uma das chaves sentimentais do enredo. Não há como não mencionar a caricatura do vilão maior, o sargento alemão, em seu histrionismo, trejeitos afetados e animalidade.
Cartaz de "Carlitos nas trincheiras". Fonte: wikimedia.org
Von Rumpel é a imagem dessa forma repetida e que, por isso, sobre ele recai na série, e por parte do espectador (não sem motivos), todo o sentimento incontido de justiça (vingança), quando ele desaba morto diante da joia com poderes mágicos que poderia salvá-lo de sua doença terminal.
Na narrativa histórica, o destino do comandante da cidade de Sant-Malo é um pouco diferente do sargento Rumpel da série, mas talvez seja mais interessante. Martin Gilbert, em “A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo”, é quem nos conta assim essa história:
“O comandante alemão de St. Malo, coronel Aulock, dera ordens para que o porto fosse defendido até o último homem. Quem desertasse ou se rendesse, declarara o coronel, não passaria de ‘um cão vadio!’. Hitler, extremamente impressionado com a determinação de Von Aulock, concedeu-lhe as Folhas de Carvalho que faltavam à sua cruz de Cavaleiro, mas a batalha foi tão rápida que a atribuição da medalha, em 18 de agosto, deu-se um dia após a rendição de Aulock”.
Na série, no último episódio, vemos o porto da cidade ser destruído. Mas quase nada sabemos do contexto em que a retomada da cidade se dá. A história se circunscreve, novamente, entre o casal e o vilão, como se o poder totalitário, a esperança e a luta da resistência e a ajuda dos aliados surgissem do nada em um céu de onde as bombas não param de cair.
E, para selar esse final, Marie e Werner, que acabaram de se conhecer pessoalmente e escapar da morte, dançam e se beijam, prometendo se reencontrar (sim, ele, desolado, se volta para ela enquanto os soldados aliados o prendem) ao final da Guerra. Deve vir 2ª temporada por aí.
Cena do filme "Paris está em chamas?" Fonte: IMDB
Querem um contraponto disso, com temática semelhante, mas com abordagem diferente? Vejam “Paris está em chamas?” (1966), de René Clément . O filme conta a luta da resistência francesa para libertar Paris em 1944. O que falta na série, a tentativa de uma contextualização histórica e a matização de personagens, está presente no filme; o que “falta” no filme, um romance como único cerne da narrativa, é o centro da série.
Ao final do filme de Clément, vemos imagens de época das comemorações pela retomada de Paris, o Arco do Triunfo lotado, a chegada do general De Gaulle , líder da resistência, sendo ovacionado. Ao final do último capítulo da série, surgem imagens históricas das cidades francesas destruídas. Esse momento é, na mise-en-scène da minissérie, a imagem verossímil mais impressionante.