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Segunda-feira,
3/6/2024
O Cachorro e a maleta
Raul Almeida
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À primeira vista, parecia tratar-se de um abandono ou, na melhor versão, um esquecimento. Hipótese improvável, pois quem iria esquecer-se de um cachorro e uma pequena mala, lado a lado, em absoluta harmonia, calma e resignação.
Eles continuaram do mesmo jeito, sem serem notados ou provocados por nenhuma criança ou adulto transitando pela plataforma ferroviária onde, sabe-se lá como, foram parar. Um velhote meio encurvado, ajudado por uma bengala desgastada,caminhando entre as pessoas que chegavam e partiam, passou pela dupla, virou-se e por um instante pareceu lembrar-se de algo. Mas foi muito rápido, sequer parou.
O animal grandalhão, também mostrava sua velhice e a maleta, apesar de bem conservada, não escondia uns arranhões e desgaste nas cantoneiras pelo constante apoio, em vários tipos de piso. O velho, uma figura de semblante um tanto amargo, olhar distante, roupas limpas, usadas, e os calçados denunciados pelo desgaste dos saltos, não escondia o seu relacionamento com os dois outros seres, um cachorro e a sua companheira, a maleta. Mais uma vez, voltou-se e olhou sem demonstrar nenhum sentimento. A estação funcionava normalmente, com os comboios chegando e partindo no horário, passageiros descendo e seguindo, outros embarcando, os funcionários em suas lidas e ninguém parecendo notar nada de estranho ou incomum por ali.
O velhote encarquilhado embarcou no vagão estacionado bem ao lado dos dois. Antes de colocar o pé no primeiro degrau, olhou fixamente, nos olhos do cachorrão, depois para a maleta e, tropeçando levemente, entrou no trem. Parou um instante na porta e voltou a olhar para aquelas duas marcas de sua própria vida. Alcançou o lugar para sentar junto a janela, do lado da plataforma, sentou-se sem tirar o sobretudo surrado, gasto e cerzido nos cotovelos, manteve o chapéu igualmente desgastado, arrumou a bengala entre as pernas e olhou pela janela, novamente buscando as duas bagagens abandonadas: O cachorro e a maleta. Em instantes que pareceram uma eternidade, o trem apitou, voltou a apitar e o movimento lento das imagens do lado de fora, indicaram a partida. O cachorro levantou-se sem se sacudir, cheirou a mala em toda a volta enquanto caminhava em direção oposta a entrada e foi desaparecendo lentamente, dissimuladamente, tão sutil que nem os empregados da Estrada de Ferro notaram. A maleta,igualmente, desintegrou, transformando-se num pequeno monte de pó, logo espalhado pelo vento suave e constante, provocado pelo ir e vir das pessoas, dos carrinhos, enfim do dia . O velho ainda sentado, entregou o bilhete para o chefe do vagão, ajeitou-se para apreciar a paisagem e lembrar as histórias, alegrias, tristezas, festas e tudo o mais que havia colecionado durante a vida, personificada no cachorro. Tempos de mordidas, brincadeiras, travessuras, e pauladas, coleira, corrente. A caderneta, guardada no bolso interno do casaco com os apontamentos mais severos, os remorsos e as culpas, retirada da maleta algum tempo atrás, desmanchou-se. Nenhum registro poderia ser lido ou aproveitado numa inquisição ou julgamento. Os cadernos com anotação de faltas e patifarias menos relevantes, pequenos deslizes, amores fortuitos, ficaram dentro da maleta. Percebendo a realidade do momento pelo qual estava passando, o velho enfiou a mão no bolso esquerdo do casaco, aquele sobre o coração e buscou uma anotação feita,num pedaço de papel amassado, onde estava escrito: Todos Serão perdoados - Marcos 3-28.
Postado por Raul Almeida
Em
3/6/2024 às 10h31
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