“Na madrugada de 6 de junho, dezoito mil paraquedistas britânicos e americanos saltavam sobre a Normandia, ocupando pontes importantes e destruindo linhas de comunicação alemãs. Às 6h30, desembarcaram as primeiras tropas – forças americanas, que desceram na praia de Utah com seus tanques anfíbios. Menos de uma hora depois, às 7h25, os primeiros soldados britânicos chegavam às praias Gold e Sword, seguidos, na praia Juno, por 2.400 canadenses apoiados por 76 tanques anfíbios. Às 10h15, a notícia desses desembarques era levada a Rommel, que se encontrava na Alemanha. Rommel voou imediatamente para a França, recebendo instruções de Hitler para, até a meia-noite, ‘devolver ao mar’ os invasores” (Martin Gilbert. “A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo”).
Winston Churchill não estava convencido do ataque à Normandia. Ele não queria que as perdas sofridas na Primeira Guerra se repetissem diante das casamatas e fortificações alemães nas praias francesas.
Mas esse dia não começou na madrugada de 6 de junho, ele foi meticulosamente preparado e detalhado dentro do teatro de operações da Guerra.
Navios que desembarcaram na praia de Omaha na maré baixa durante os primeiros dias da invasão aliada, em meados de junho de 1944. Fonte: https://pt.wikipedia.org/
Os aliados treinaram as estratégias e possíveis adversidades, empregaram técnicas de despistamento para enganar os alemães sobre a data e o local de desembarque e avaliaram as condições climáticas e das marés periodicamente.
Tudo isso nos é contato pelo próprio Churchill (“Memórias da Segunda Guerra Mundial”), por historiadores, pela literatura e pelo cinema.
O Dia D é objeto não apenas de um decisivo momento da história, mas se tornou uma das representações mais presentes nas imagens do Século XX, e continuará sendo.
O grande monumento cinematográfico desse tema ainda é o filme “O mais longo dos dias”, de 1962 (Dir. Andrew Marton, Bernhard Wicki, Ken Annakin). Uma das produções que mais bem representam os acontecimentos históricos daqueles dias.
Vemos desde o começo da película a preocupação de generais, comandantes e soldados com a data para a invasão e a angústia diante dos adiamentos.
Cena do filme. Fonte: https://www.jestersreviews.com/reviews/3960
É preciso lembrar que naquele período, nos conta o relato histórico, já há muito se falava sobre a necessidade de abrir uma frente de ataque na Europa pelos aliados .
Stalin havia insistido nessa possibilidade e o tema se tornaria parte do acordo da Conferência de Teerã , em 1943, com o governante soviético.
O próprio Stalin enviaria um telegrama, em resposta a uma mensagem de Churchill que dizia que a operação começara bem, elogiando a iniciativa aliada e prometendo lançar as forças russas na parte Oriental da Europa.
Essas correspondências entre os dois líderes revelam um pouco do que representou a operação.
Mas nem Stalin, nem Churchill (a ausência do primeiro primeiro-ministro inglês, que vivia rezando pela entrada dos EUA na Guerra, é incompreensível), surgem no filme.
Na produção norte-americana o foco é muito maior na participação estadunidense, do que nos desdobramentos das negociações políticas dos aliados.
Os soberbos e descrentes oficiais alemães. Fonte: https://www.wearemoviegeeks.com/
Mas o generalato alemão surge. E surge espelhando a história de que no dia da invasão Hitler estava empanturrado de remédios para dormir e de que ninguém deveria incomodá-lo.
Mas também surge na arrogância dos generais que acreditavam, em parte pelo despistamento aliado, que a invasão aconteceria em outro momento e outro lugar.
Para eles, entrar pela Normandia seria não apenas uma insensatez estratégica, mas um risco diante da instabilidade do tempo, com muitas nuvens, chuva e marés variando, naqueles dias.
Mas Eisenhower, o comandante das forças aliadas, bateria o martelo e definia o Dia D e a Hora H.
Um LCVP (Landing Craft, Vehicle, Personnel) do USS Samuel Chase , tripulado pela Guarda Costeira dos EUA , desembarca tropas da Companhia A, 16ª Infantaria , 1ª Divisão de Infantaria (a Big Red One) caminhando para a seção Fox Green da Praia de Omaha. Fonte: https://pt.wikipedia.org/
No filme, os alemães não apenas parecem descrentes com as informações que chegam em mensagens em códigos sobre a invasão, mas fazem troça delas, jogando cartas, bebendo, e, mesmo diante da visão dos navios às portas da Normandia, não parecem dar crédito ao que iria acontecer.
Já durante algum tempo os aliados dispunham da decifração da máquina Enigma alemã (parte de um sistema de deciframento que se chamou Ultra), o que facilitaria muito suas estratégias.
Eles sabiam dos movimentos dos nazistas e sabiam do seu erro tático, erro do próprio Hitler, em acreditar em uma outra invasão.
A esses erros táticos se somam, como o filme rapidamente demonstra, a insistência de Hitler em manter dispersas suas forças e a exigência da permanência do exército até o último homem – decisões com as quais parte de seus generais, incluindo Rommel, não concordava -, posições que aumentaram as desvantagens do Reich.
O historiador Martin Gilbert narra que os alemães, ainda no dia nove de junho, acreditavam que a invasão se daria em Pas de Calais e de que isso seria confirmado pela lenta progressão das tropas aliadas.
“Essa mensagem foi decifrada na Grã-Bretanha em 10 de junho. As falsas operações não apenas forneciam um escudo protetor aos exércitos aliados como seus responsáveis sabiam que as farsas tinham bons resultados”. Diz ele.
O jogo de táticas de decifração, escutas e espiões, tão importante para as estratégias de ambos os lados, surge mais do lado nazista que tateia no filme em busca da decodificação das mensagens do ataque.
Mas, do lado francês, em determinado momento, um modesto senhor se prepara para tomar sua sopa trazida por sua esposa e ouve em um rádio uma mensagem codificada, ele larga a colher e pula de alegria.
Francês celebra ao ouvir a mensagem codificada sobre a invasão aliada. Fonte: youtube.com
Em outro lugar, a resistência francesa reconhece seu código e sai para realizar o descarrilamento de um trem alemão, em uma tática de guerrilha.
Essa caracterização dos franceses não se repete com os protagonistas, o que alguns criticam como uma falha do filme. Teria faltado uma representação mais profunda dos personagens interpretados por ícones, como John Wayne , Robert Mitchum , Henry Fonda e Richard Burton .
Talvez não fosse esse o objetivo, como o é de alguns filmes mais contemporâneos sobre guerra.
Mas a progressão das ações da guerra, a representação das batalhas são seu grande objetivo e seu ponto forte.
Talvez os diretores acreditassem que não coubesse, para um momento tão importante e para um esforço coletivo inédito de nações, primar pelas histórias de cada um dos protagonistas.
A sequência fílmica feita da batalha no vilarejo de Ouistreham, sem dúvida, está na história da filmografia de guerra.
Ela é realizada do alto (parece ser de um balão), mas é lenta e acompanha o movimento de ataque e contra-ataque dos soldados correndo pelas ruas, atirando e buscando proteção, e dá ao espectador uma visão subjetiva inesquecível dos acontecimentos.
Não há como não lembrar, pelo caos ali instalado, da famosa sequência de “Nascido para matar”, de Stanley Kubrick (1987), na qual os soldados tentam avançar em um pequeno espaço de uma cidade, mas são continuamente alvejados por um único atirador que derruba, em câmera lenta, cada um dos que tentam atravessar aquelas ruínas.
Temos também as sequências da praia de Omaha, onde a batalha foi mais dura, na qual a câmera faz um traveling lateral do alto durante o movimento do desembarque e avanço dos soldados e, depois, dois aviões alemães são mostrados, em tomadas aéreas de dentro das aeronaves, atingindo as linhas militares que tentavam correr pela areia.
Essas técnicas que se tornariam comuns em filmes mais recentes, não eram tão comuns ainda naquela época, especialmente porque não se tratam apenas de trucagens com cromaqui, ou, como depois se convencionou fazer, por trucagens do computador.
A excelência dessas imagens está em mostrar esse realismo que não quer ser apenas sentimental, às vezes piegas em filmes de guerra, mas um realismo que busca até mesmo uma certa reconstituição dos fatos em sua representação.
Nesse comparação sempre insuficiente entre história e cinema, porque tratam-se de duas realidades diferentes, de formas de contar a história diferente, a não referência da importante batalha da cidade de Caen também é um “esquecimento” do filme.
Caen era estratégica para o avanço da infraestrutura dos aliados e para pôr fim às conexões de transporte dos alemães.
Não dá para mostrar tudo, e nem se pode. O cinema tem seu papel no imaginário, mas ele não é a história tal como de fato ocorreu. Nem a histografia é.
Para alguns, o filme pode parecer ufanista demais, mas o que ele e a história demonstraram é que o terror nazista não podia se enfrentado nem pelo exército de um homem só, nem pela figura de um tolo herói que por acaso estava ali.
Sgt./Lt. John H. Fuller (Jeffrey Hunter) tenta ajudar um amigo desfalecido. Fonte: https://wp.jeffreyhunter.net/films/the-longest-day/
Não havia espaços para tergiversar.
Em outro contexto de suas “Memórias”, Churchill, na Normandia, após o Dia D, escreve para o presidente Roosevelt elogiando o poderio das forças aliadas.
Diz ele: “O senhor usou a palavra ‘estupendo’ num dos primeiros telegramas que me enviou. Devo admitir que o que vi só pode ser descrito por essa palavra, e penso que seus oficiais também concordariam ”.
É evidente que Churchill queria dar alguma boa-nova para seu aliado, mas ele sabia, como cunhou em uma de suas famosas frases, que “os problemas da vitória são mais agradáveis que os problemas da derrota, mas não menos difíceis”.
David Campbell (Richard Burton). Fonte: https://www.warhistoryonline.com/featured/56-movie-mistakes-the-longest-day.html
Na penúltima sequência de “O mais longo dos dias”, o aviador David Campbell (Richard Burton) está gravemente ferido encostado em uma casa, depois de um matar um combatente alemão, cujo corpo está à sua frente.
Um soldado norte-americano o encontra, lhe dá um cigarro e senta ao seu lado. Campbell diz a ele, “engraçado, não? Ele está morto; eu, aleijado; você, perdido. É sempre assim. Digo, a guerra”.