O jardim da maldade | Blog de Diana Guenzburger

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Quarta-feira, 28/8/2024
O jardim da maldade
Diana Guenzburger
+ de 900 Acessos

Tudo começou com um convite.

“Quer ir à exposição comigo? Todo mundo está comentando, passou na televisão várias vezes. Seria ótimo ir com você. Pode me ajudar a entender um pouco!”

Gabriela, há muitos anos secretária na firma onde eu trabalhava como advogada, sabia que eu fizera uns cursos de história da arte, moderna e contemporânea. Tinha interesse e curiosidade por essas formas de arte, mas a falta de conhecimento deixava-a meio perdida. Aceitei o convite e fomos, sábado pela tarde.

A exposição, organizada em ordem cronológica, começava com modernos. Matisse, Picasso, alguns Cézanne. Nada muito chocante, as pessoas no século XXI já se acostumaram com coisas como o nariz verde da senhora Matisse, o olho torto da modelo de Picasso. Tentei transmitir meu pouco conhecimento, discursando sobre como Cézanne havia reinventado o espaço. Gabriela me olhava com desconfiança.

Continuamos a andar e chegamos à arte contemporânea. Objetos substituíam telas, outras formas de expressão tomavam lugar da pintura. Gabriela entusiasmou-se. Como um urinol poderia estar num museu?

O salão era enorme, ao terminar de percorrê-lo aleguei cansaço. Fomos para a lanchonete tomar café com pão de queijo e trocar impressões. Um rapaz alto e bonito, vestido simplesmente com camiseta de algodão e calças largas, aproximou-se de nossa mesa. Cabelos mais compridos que o usual, penugem de barba cobrindo-lhe o rosto, enfeitado por único brinco de prata na orelha direita. Pediu para sentar-se conosco (não havia mesas disponíveis) e logo entrou na conversa, apresentando-se como Felipe. Ficou claro desde o início que seu nível de conhecimento artístico era muito superior ao meu, o que indicava um profissional. Discorreu com grande erudição sobre as obras que tínhamos visto. Gabriela fitava-o com brilho nos olhos.

“Você é artista ou professor?” perguntou.

“Nem um nem outro. Ou quem sabe as duas coisas?” desconversou com uma risada.

Logo em seguida, porém, sua expressão ficou séria e desanimada.

“Trabalho há muito tempo numa obra. Mas não consigo terminar, falta alguma coisa, uma parte importante, nem eu mesmo sei o que é.”

A conversa continuou entre os dois, que pareciam ignorar minha presença. Finalmente, levantei-me.

“Gente, vamos ver o resto. O museu não demora a fechar.”

Felipe nos acompanhou. Esculturas de luz, móbiles enormes, arte povera, vídeos, fotografia, arte kitsch, ele tinha muito a dizer sobre tudo que víamos. Gabriela olhava-o em êxtase. Minha pessoa esquecida, enquanto os dois caminhavam e conversavam animados em voz baixa, fui ficando para trás.

O museu fechou. Na porta, despedimo-nos os três. Peguei um táxi sozinha, Gabriela e Felipe andaram juntos na calçada. Uma sensação desagradável incomodava-me. O que teria visto em Gabriela um homem culto e bonito como Felipe? Singela e sem requinte, pouco conhecimento das artes plásticas, era estranho que ficasse tão atraído. Logo me censurei por estes pensamentos. Seria inveja, ciúme, preconceito? Bem mais velha que minha amiga, talvez não quisesse enxergar o encanto da juventude.

Passaram-se algumas semanas. Encontrava Gabriela no trabalho, que parecia sempre muito feliz, risonha e cheia de energia. Tinha vontade de perguntar-lhe sobre Felipe, se o tinha visto depois do dia no museu, mas a discrição impedia-me de fazê-lo. Afinal, não éramos tão íntimas.

Um dia, Gabriela não veio trabalhar. Mais outro, e outro ainda. Do escritório, telefonamos para a família, com quem ela morava. Preocupados, haviam procurado em toda parte, notificado a polícia. Nada da moça aparecer.

Passadas duas semanas, resolvi visitar a família. O pai, tenso e a mãe chorosa não tinham ainda nenhuma pista. Conversei demoradamente; perguntei sobre amigos, parentes, nenhum sabia de Gabriela. Estava me despedindo, quando notei sobre o aparador na entrada um cartão com o nome Felipe, seguido de endereço no Horto Florestal.

Dia seguinte, faltei ao trabalho e fui procurar o local anotado. Segui a rua, que se embrenhava na floresta e subia o morro. Finalmente, cheguei ao número do endereço. Atrás do portão e muro, árvores altas e mato espesso impediam a visão do interior. Toquei o botão do interfone. O portão abriu-se e ingressei, deixando o carro estacionado fora.

Ao entrar, assombrei-me com o tamanho do lugar. Jardim enorme, verdadeiro parque, não se podia ver o final. Um caminho de saibro levava para o interior. Em volta, grandes árvores e arbustos cerrados tornavam o ambiente sombrio.

Ao percorrer a estrada, logo percebi tratar-se de local fora do comum. Ao longo do trajeto, no meio a plantas exuberantes, viam-se nichos contendo estranhas intervenções humanas, que se misturavam com a natureza. Esculturas enormes penduradas das árvores, teias de aranha feitas de cordas que se ligavam aos galhos, grandes placas de plástico com múltiplas cores balançando suavemente com a brisa, flores imensas de vidro colorido que formavam canteiros, ossos humanos empilhados. Continuei a andar até avistar casa antiga, um tanto decadente. A porta abriu-se de repente e Felipe apareceu.

“Doutora! Que prazer em vê-la aqui. Veio visitar meu ateliê?”

“Não propriamente”, ia respondendo, interrompida pela fala entusiasmada de meu anfitrião, que me tomou pelo braço e iniciou caminhada por trilhas na mata. A cada obra de arte avistada, parava para dar longas explicações sobre técnicas empregadas e significado do trabalho. Algumas vezes tentei esclarecer o motivo de minha visita, mas Felipe não cessava de falar. Até que bruscamente, ao consultar o relógio, parou e interrompeu o discurso.

“Desculpe, preciso continuar ...”

Olhou-me fixamente:

“Sabe aquela obra que não conseguia acabar? Sua amiga Gabriela me ajudou. Está pronta”.

Correu em direção à casa. Tentei segui-lo, mas quando cheguei já havia entrado e fechado a porta. Bati com força várias vezes, sem resposta. Iniciei o caminho de volta. Desorientada, no entanto, perdi o rumo e embrenhei-me cada vez mais pelas trilhas do bosque. A estranheza das intervenções artísticas aumentava meu desconforto. Uma imensa mão humana com três dedos cortados, de grande realismo, causou-me arrepios. Na mata, cada vez mais espessa, intestinos pendiam das árvores e confundiam-se com cipós. A certa altura, deparei-me com monstro que misturava características de animal quadrúpede com grande bico de pássaro e cabelos humanos. A perfeição técnica desta concepção dava a impressão de um ser vivo. Ao fitá-lo intensamente, pareceu-me que o monstro se movia.

Tomada pelo medo, continuei a andar, à procura da saída. De repente, atrás de um arbusto com folhagem espessa, pareceu-me avistar o rosto de Gabriela. Gritei de surpresa e entusiasmo, mas a imagem desvaneceu-se. Rodei nos calcanhares e percorri o caminho inverso nas trilhas, mas nada vi. Desanimada e exausta, sentei-me sobre um tronco caído e abaixei a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos.

Quando olhei novamente em volta, Gabriela estava sentada a meu lado. Parecia satisfeita e fitava-me rindo.

“Gabriela! O que você está fazendo aqui? Venha pra casa, estão todos preocupados.”

Tentei segurar-lhe o braço, mas ela já desaparecera. Continuei a andar, cada vez mais confusa. Entrava por trilha que não dava em lugar nenhum, tentava penetrar no mato, tropeçava. De repente, pareceu-me ver Gabriela no alto de uma colina, coberta por uma túnica verde que brilhava fosforescente. Acenou-me e logo em seguida se dissipou.

Resolvi esquecer minha amiga e concentrar-me em sair daquele lugar. Ao deparar com uma mangueira enorme, avistei Gabriela de novo, sentada num dos galhos baixos. Desta vez, chamou-me pelo nome. Não dei atenção e continuei a andar, até que uma voz atrás de mim assustou-me. Era Felipe.

“Não é admirável, Doutora? Transformei Gabriela na obra de arte completa. Está em toda parte. Em qualquer tempo. É impossível deixar de vê-la, ou fugir dela. Também é eterna, nada a destrói. Atingi a perfeição artística, ninguém vai poder me superar.”

Olhei-o com espanto e horror.

“Quero ir embora, onde fica o portão de saída?”

Felipe pareceu não me ouvir.

Tentei me afastar, segurou-me pelo braço. Procurei desvencilhar-me, ao mesmo tempo não pude deixar de sentir seu cheiro de homem, misturado com suave e atraente perfume masculino. Aproximou-me dele e roçou meu braço levemente. Um arrepio de prazer percorreu-me o corpo. Apertou meus seios contra seu peito e deslizou a mão pelas minhas costas. Enfraquecida, suspirei, derrotada.

“Tenho um projeto pra você também,” murmurou ao meu ouvido. “Outra obra de arte. Vamos começar?”


Postado por Diana Guenzburger
Em 28/8/2024 às 19h41

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