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Segunda-feira, 7/4/2003
Entrevista com o poeta Júlio Castañon Guimarães
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 8100 Acessos

Julio Castañon é poeta, ensaísta, tradutor e pesquisador do Setor de Filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa. Fez o doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Foi co-editor da revista de poesia Inimigo Rumor.

Publicou Territórios/Conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes (Rio de Janeiro: Imago, 1993), estudo sobre a obra de Murilo Mendes.

Organizou ainda as seguintes edições: Seleta de prosa de Manuel Bandeira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997); A cinza das horas, Carnaval, e O ritmo dissoluto de Manuel Bandeira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994; em colaboração com Rachel Valença); Horto de Mágoas de Gonzaga Duque (Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Biblioteca Carioca, 1996; em colaboração com Vera Lins); Impressões de um amador de Gonzaga Duque (Belo Horizonte: UFMG/Rio de Janeiro: FCRB, 2001; em colaboração com Vera Lins); Madame Pommery de Hilário Tácito (Campinas: Unicamp; Rio de Janeiro: FCRB, 1992); Caderno de escritos de Arlindo Daibert (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995); e Murilo Mendes 1901-2001 (Juiz de Fora: CEMM/UFJF, 2001), reunião de textos de e sobre Murilo Mendes. É ainda autor da edição crítica do romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso (Madrid: Archivos, 1991)

Traduziu, entre outros, A câmara clara, de Roland Barthes (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983); Incidentes, de Roland Barthes (Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988); Autobiografia de todo mundo, de Gertrude Stein (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983; em colaboração com José Cotrim); 13 escritos, de Francis Ponge (Florianópolis: Noa Noa, 1980); Extraterritorial, de George Steiner (São Paulo: Companhia das Letras, 1990); As montanhas rochosas, de Michel Butor (Florianópolis: Noa Noa, 1990); Brinde Fúnebre e Prosa, de Mallarmé (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995); e Seis semanas nas minas de ouro do Brasil, de Ernest de Courcy (Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1997).

Publicou vários livros de poemas que estão reunidos no volume Matéria e paisagem (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998).

A poesia em elipse de Júlio Castañon Guimarães

A partir da obra de Cézanne tornou-se prática comum aos artistas voltarem-se sempre para um motivo, pois o que os interessa não é mais o tema em si, mas pôr à prova as possibilidades estilísticas de sua própria da arte.

Dialogando com essa tradição, a poesia de Julio Castañon se constitui através de vários recortes geográficos (paisagens e cidades identificáveis), como de situações diversas (encontros, passeios, vistas de janela), que se apresentam como verdadeiras naturezas-mortas.

Na sua poética qualquer fato natural ou humano busca o total desaparecimento mediante o jogo da linguagem - porque o poeta acredita que a única força da linguagem é a poesia. Por isso, pratica a poesia como aniquilamento do objeto concreto, que deve tornar-se, no íntimo da palavra, "poesia pura". Tal como a tradição que vem de Mallarmé, Castañon exprime nas camadas mais profundas de suas significações um universo abstrato carregado de tensões de ambigüidade ilimitada.

Sua poesia consiste em movimentos variáveis da linguagem, para os quais os acontecimentos, concretos ou afetivos, são apenas materiais sem sentido decifrável. Ao mesmo tempo em que nega objetivamente, cria lingüisticamente. Pode-se, por isso, intuir qual o desejo da sua poética: criar the poem per se.

Este parece ser o caminho da poesia de Castañon: repelir de si qualquer vulto humano, anular qualquer propensão para o alto e descartar qualquer febre espiritual. Na sua poesia tudo está ali, como uma paisagem, um objeto inorgânico em estado puro.

O conteúdo de seus poemas reside, dessa forma, no seu próprio movimento abstrato, referindo-se, por isso, a si próprios, na forma não interpretável em que aparecem. Como no "Dois poemas estrangeiros": "nem silêncio nem eco,/um peso/ um sempre,/ no escuro."

Por isso, temos diante dos acontecimentos que sua poesia comenta um pressentimento de que somente a linguagem é suficiente e o resto representaria apenas o espaço que possibilita a alquimia do verso. Um trecho do poema "Chet Baker sings again" torna isso claro: "esgarça imagens// se esgarça/ em silêncios/ para erguer-se/ um mínimo e tanto/ acima de um e outro/ silêncio".

A idéia de uma poesia elíptica, criada através de fragmentos capturados ao sabor da visão, é o movimento interno e fundamental de sua busca poética. E dentro da própria poesia de Castañon podemos perceber as pistas desta interpretação: "corpo de fragmentos/ a natureza nem assim devora/ a geometria que a consome" ou "entre abolida superfície/ e memórias sem costuras/ as palavras se elidem/ exploradas até o nó da erosão".

Essa busca trata, na movimentação elíptica de sua linguagem, da criação de conteúdos situados no limite e no além do compreensível. A definição de poesia como "vôo tácito ao abstrato", dada por Mallarmé, encontra seu par na poética de Castanõn. É o que o próprio autor de Matéria e Paisagem nos diz, em um de seus primeiros poemas, denominado "Horizonte", ao falar do texto como "babélica escrita" ou "percurso inominável".

Entre a abertura e o fechamento do poema The Wast Land, de T. S. Eliot, há os versos: "pois só conheces um monte de imagens partidas" e "escorei estes fragmentos em minhas ruínas" - São versos que são muito úteis para se pensar a poética de Castañon. Mas há um trecho de Quatro Quartetos, ainda de Eliot, que talvez sintetize e ilumine ainda mais a compreensão da poesia de Julio Castañon:

"As palavras movem-se, move-se a música
Apenas no tempo; mas aquilo que apenas vive
Apenas pode morrer. A palavra, findo o discurso,
Chega ao silêncio. Apenas pela forma, pela norma,
Palavras ou música chegam ao repouso
Como um vaso chinês, movendo-se
Perpetuamente em seu repouso."

***

Abaixo publicamos a entrevista que Julio Castañon concedeu por e-mail ao Digestivo Cultural. As questões 8, 9, 10 e 11 foram gentilmente formuladas pelo poeta Ronald Polito. Aqui registramos nosso agradecimento por sua participação.

ENTREVISTA

1 - No seu primeiro livro Vertentes, além das epígrafes com versos de dois poetas mineiros (Murilo Mendes e Drummond), você cria poemas intitulados com nomes de cidades históricas de Minas Gerais como Ouro Preto, Mariana e Congonhas. Qual a importância desses poetas e dessa geografia no seu primeiro livro?

JULIO - Esses dois poetas estão presentes em meu trabalho também em outras situações. Cada um deles tem importância própria nesse sentido. Mas em conjunto, e num conjunto que abrange também Manuel Bandeira (e que na minha formação a seguir eu juntaria João Cabral de Melo Neto), eles têm importância na medida em que acho muito difícil para alguém que pretendesse fazer poesia no Brasil a partir de certa época escapar do fato de que esses poetas constituem a base de conhecimento. Além disso, são poetas que estão integrados num espectro cultural mais amplo do que apenas a produção de poesia. Quanto aos poemas relacionados com cidades históricas de Minas Gerais, eu diria que, mais do que uma geografia, essas localidades constituem uma história. E nessa linha são facilmente associáveis aos poetas já mencionados. É claro que há o encanto pessoal com essas cidades, mas sobretudo elas me parecem importar pelo seu significado histórico-artístico, ressaltado de modo fundamental justamente pelos modernistas, por poetas como os referidos, que todos escreveram sobre elas. E seria o caso de lembrar também que o Serviço do Patrimônio vem a ser uma criação modernista. Mesmo quem não conheça ao vivo essas cidades, poderá ter no mínimo uma forte idéia sobre a significação delas a partir da leitura de Drummond, Bandeira, Murilo, Cecília Meireles. Assim, esses meus poemas provavelmente serão resultado tanto da impressão direta causada pelas cidades quanto uma forma de diálogo com essa tradição literária de que elas são elemento importante.

2 - Em 17 Peças, seu segundo livro, você pratica uma poesia experimental que aproveita o espaço gráfico da página na sua estruturação (num sentido verbo-visual), tal como um certo Mallarmé e/ou a poesia dos Concretos. O que o levou a esta experiência e porque a abandonou nos seus livros seguintes?

JULIO- No livro, anterior, no Vertentes, já havia tanto algum recurso (ainda que discreto) ao espaço como elemento de estruturação, quanto referência a Mallarmé e aos concretos. Aliás, acho que de livro para livro, desaparecem algumas coisas e surgem outras, mas que de algum modo já tinham pelo menos uma insinuação no anterior. Acho que o trabalho dos concretos é outra área fundamental na literatura brasileira. Me reconheço como devedor em altíssimo grau das chamadas vanguardas ou de poetas de algum modo ligados a ela, em especial Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Afonso Ávila e José Paulo Paes. O que me levou a esta experiência foi naturalmente a leitura intensa desses autores, de sua poesia e de seu trabalho crítico, foi meu interesse pelas questões aí presentes, sendo essas minhas experiências um modo de pensar essas questões e de experimentar possibilidades de linguagem. O abandono nos livros seguintes se dá certamente porque esgotei com alguns poucos poemas minha precária capacidade de lidar nessa área e porque minhas experimentações começaram a entrever outras possibilidades. Esse abandono não decorre de modo algum de alguma forma de rejeição. Mas também acho que é muito difícil fazer alguma coisa boa na área. Acho que a maior parte do que vejo de poesia visual hoje me parece puro epigonismo, me parece cópia rala de procedimentos de Augusto de Campos.

3 - Nos seus dois últimos livros, Dois Poemas Estrangeiros e Matéria e Paisagem, você inicia uma criação de poemas maiores e uma aproximação com poemas em prosa. O que o levou a abandonar os sintéticos poemas dos livros anteriores?

JULIO - Acho que em parte respondo a isto na resposta à pergunta anterior. O caminho da minha experimentação foi incorporando outros recursos, entre eles o texto de maior dimensão e a prosa. No fundo, me parece que se trata sempre de uma questão de ritmo. Nos textos mais longos (mais longos para os meus padrões, diga-se de passagem, pois para outros poetas estes meus textos ainda podem ser considerados razoavelmente breves), acho que a questão central para mim é a experimentação sintática, e não o desenvolvimento de um discurso mais amplo em função de determinada temática. É a dimensão da exploração sintática (tomada não apenas num sentido gramatical, mas de articulação dos diversos componentes do texto) que desencadeia os poemas e sua reflexão. No caso dos poemas em prosa, o interesse por ele provém certamente de uma mudança radical de ritmo, e da tensão que ele propõe entre o discursivo, o narrativo, a digressão, diante das possibilidades de elipse e concisão.

4 - Na sua poesia, de uma forma geral, a paisagem e as coisas existem peremptoriamente, enquanto o homem praticamente inexiste (ou se oculta). Porque?

JULIO - Pode ser que a presença das coisas ocorra desse modo em meus textos, mas não me parece que ocorra também essa não presença do ser humano. Se fosse assim, diante da pergunta do Ronald sobre a memória como elemento importante em meus textos, eu teria de dizer que não há memória alguma. Se há memória, e de fato há, inevitavelmente não há apenas coisas. Talvez não haja, e de fato não há, expansões emitidas por um personagem em primeira pessoa. As questões presentes nos poemas dizem respeito a relações como afetos, dizem respeito a formas de percepção da realidade (e aí entram fortemente as coisas), mas dizem respeito também a dimensões culturais (como as cidades históricas já referidas e a música referida na pergunta seguinte).

5 - Você escreveu um grupo de poemas referentes a músicos de jazz como Bill Evans, Thelonious Monk e Chet Baker. Estes poemas apenas homenageiam os músicos citados ou existe na sua poesia uma busca por uma incorporação e/ou diálogo com a estrutura musical do jazz?

JULIO - Esse poemas claramente homenageiam os músicos, mas procuram fazer isto evitando transformar os músicos em tema a ser explorado seja como comentário à música ou ao músico, seja como vã tentativa de simulacro da música. Acho que os poemas procuram compor uma imagem, a imagem que os traços mais fortes do desempenho desses músicos permitem que façamos deles. Por meio de um conjunto de imagens, de vocábulos, de certos ritmos, procura-se pelo menos lembrar o que da interpretação desses músicos temos em nossa memória. Como esses poemas são razoavelmente diferentes uns dos outros, isto já serve de pista para que se perceba que estão pelo menos em busca dessas imagens para esses músicos também bastante distintos. Nessa busca dessa imagem, num sentido amplo, que cada poema constituiria, ela se organiza nos diversos planos do poema (no ritmo, nos temas, no vocabulário, e assim por diante) tem-se um movimento que deriva não da estrutura, que é algo muito complexo, mas também do movimento que constitui a interpretação desse músicos. Na verdade, acho aproximações desse tipo só possíveis num plano bastante amplo. Tentativas de aproximação de estruturas de linguagens distintas geralmente fracassam. Mas Murilo Mendes tem algumas soluções maravilhosas. Não por acaso ele se disse influenciado por uma série de compositores. Na verdade, além desses casos mais explícitos, acho que vez ou outra irrompe em meu trabalho algum elemento proveniente do universo musical, que com certeza é a coisa de que mais gosto. Alguns podem ser claros, como um antigo poema que tem por título "Mozart", ou alguns poemas mais recentes em que no título aparece a palavra "canção". Mas - envergonhadamente - me pergunto se o título do poema "Última canção" não será devedor das "Quatro últimas canções" de Richard Strauss, ou se a expressão "imensas e pesadas massas sonoras", de outro poema, não nasceu da escuta de Bruckner. Pode ser que no poema "Tarde de domingo" os versos "essa música / feita de limpidez / e medida" remetam a um compositor como Mozart. Um poema como "Composição" do livro Inscrições tem a ver com a dimensão construtiva da música, até pela presença de certas palavras no poema. Não foi inútil para mim, por exemplo, a audição das peças de Boulez baseadas em Mallarmé. Do mesmo modo como ouvir diferentes interpretações das mesmas peças, às vezes pelo mesmo intérprete, como no caso de Glenn Gould. Mas também me pergunto enfim se provavelmente isto terá alguma importância para a leitura dos poemas. O fato, porém, é que a coisa de que gosto mesmo é música, o que mais gosto de fazer é ouvir.

6 - Você tem se dedicado a traduzir alguns poetas franceses (Butor, Mallarmé, Reverdy, Ponge). Em que medida esse procedimento e a escolha destes nomes interfere na sua criação poética?

JULIO - Eu gostaria de lembrar ainda alguns outros autores que traduzi, ainda que esporadicamente, justamente porque não são franceses - uns poucos poemas de Umberto Saba, um soneto de Keats, peças de teatro e poemas de Gertrude Stein, além de um de seus livros de memórias (Autobiografia de todo mundo). Mas gostaria de lembrar ainda outros poetas franceses como Du Bellay e Malherbe, mas sobretudo Paul Valéry. Essas traduções estão espalhadas nas revistas Inimigo rumor, Cacto, Percevejo (do curso de teatro da Uni-Rio), na Folha de S. Paulo. Naturalmente seria um despropósito dizer que a tradução desses autores, em alguns casos tão distintos, e justamente por isso, interfere no meu próprio trabalho de poesia. Mas da colocação "tradução desses autores", se se retirar a ênfase de "autores" e transferi-la para "tradução" já se começa a admitir a possibilidade de uma inter-relação entre as duas práticas. Naturalmente, procedimentos de alguns desses poetas, algumas de suas noções, terão contribuído para o conhecimento e a prática que venho tentando desenvolver no campo da poesia. Mas é de fato o exercício da tradução que mais diretamente fornece contribuições. Na medida em que traduzir implica destrinchar um texto para recompô-lo em outra língua, isto redunda em que se percebam ou se fique conhecendo vários dos elementos que constituem o poema, vários dos procedimentos que culminaram na constituição daquele texto. Além disso, em especial nesse tipo de trabalho não é possível a ingenuidade de supor que um único leitor (no caso, o tradutor) dê conta da leitura de textos de autores como os mencionados. Assim, o processo de tradução, que envolve esse conhecimento crítico dos textos, envolve também o conhecimento da crítica existente sobre esses autores. O acúmulo de livros que procuram analisar as mais diferente dimensões da obra desses autores não pode ser desconhecido. Assim, além do que esses autores podem deixar de marcas por intermédio do trabalho de tradução, esse trabalho pelo que exige de esforço de conhecimento contribui desse modo para a ampliação do conhecimento sobre poesia.

7 - Para você quais os mais importantes poetas brasileiros contemporâneos?

JULIO - Augusto de Campos, Affonso Ávila, Haroldo de Campos, Sebastião Uchoa Leite, Armando Freitas Filhos, Duda Machado.

8- Ainda que não me pareça central em sua obra, o tema da homossexualidade está presente em quase todos os seus livros. Longe da linguagem escrachada de um Glauco Matoso, por exemplo, seus poemas são, contudo, transparentes e oscilam com suavidade entre o apolíneo e o dionisíaco, pois ambos estão bem desbastados de qualquer excesso. Mas eu não encontrei claramente o amor nestes poemas, encontrei o desejo físico. É possível você falar um pouco sobre isto?

JULIO- Essa oposição amor/físico me fez pensar na pergunta do Jardel em que de certa forma também há uma oposição entre coisas/humano. Fico me perguntando se essas oposições não têm mais a ver com a forma como os poemas se organizam, com sua gramática, que elimina certos traços habitualmente ligados a esses pares supostamente opositivos. E aí ainda me pergunto se a localização de temas não passa pelos mesmos problemas, ao deixar escapar certos elementos da organização que podem modificar a própria definição dos temas. A detecção de um tema sempre me dá a impressão de que leva a diminuir a ênfase no poema como construção ficcional. Mas quanto à oposição da pergunta no tocante aos meus poemas, lembro um poema inicial em que o personagem diz "Eu quero que você saiba que estou apaixonado por você", e se empenha em dizer isto em francês, talvez acrescentando com isto um traço de disfarce. Enfim, com uma frase destas acho que não dá para dizer que não se fala de amor.Mas acho também que prefiro falar de afetos, que terão naturalmente suas qualificações. Por outro lado, há poemas em que ocorrem elementos físicos, quase como se o corpo fosse esquartejado, mas lembro que esses elementos físicos compõe um conjunto (o texto) com outros elementos - num caso, com pedaços de paisagem, que por sua vez ocorrem por meio do recurso a pedaços de texto de Manuel Bandeira. Bem, o fato é que não acho que se possa dizer que se encontre o "tema da homossexualidade" em meus poemas. Pelo menos, não nesses termos, como se algum poema tratasse de uma questão. Há poemas que se desenvolvem em torno de relações, sempre bastante indefinidas, e essas relações se formam a partir de traços físicos, irrupções de afeto, restos de discursos, fragmentos de memória. E aí sim, acho que o encaminhamento dessa organização se faz guiado por um "olhar" gay. Enfim, entre o tema e a questão, fico com o modo.

9- Um tema permanente em seus livros são certas paisagens e principalmente cidades mineiras, que se relacionam com o amplo papel que você confere à memória. Qual a importância de Drummond neste âmbito?

JULIO - De certo modo acho que respondi essa pergunta ao falar a partir de uma outra pergunta semelhante. Mas aqui você fala de uma relação entre paisagens e cidades mineiras com a memória. É claro que há um lado de memória pessoal. Mas há uma boa dose de imaginação da memória, afinal não escrevo livros de memória. Por outro lado, muito dessa memória não é pessoal, mas uma memória cultural, ligada pelo menos em parte à literatura existente sobre os objetos referidos.

10 - Já no primeiro livro há menção a Murilo Mendes, que me parece uma paixão sua, pois escreveu, inclusive, tese doutoral sobre o autor. O que você encontrou em Murilo que é tão importante para você?

JULIO - Não sei se é uma paixão, mas tenho especial interesse por ele. Comecei a ler de fato Murilo Mendes quando estava entrando para a faculdade, ano em que se publicou Convergência, que li imediatamente. Pouco antes tinha saído o artigo de Haroldo de Campos sobre Tempo espanhol. Assim, comecei a ler de trás para a frente. E durante muito tempo me interessava sobretudo pela parte final da obra dele. A parte inicial era algo distante para mim, quase incompreensível. Anos depois, quando pensava na tese de doutorado, ampliei bastante meu interesse. Na elaboração da tese me deu especial prazer a tentativa de acompanhar o percurso cultural dele; enfim, naquele mundo de referências presentes nos textos dele, para poder compreendê-las achei que precisava ter uma noção mínima das referências. E são referências sobretudo às artes plásticas, mas também à música e à literatura, bem como a viagens, ou decorrentes de viagens. Procurei ver, na medida do possível, todos aqueles quadros, ouvir aquelas músicas, o que me deu muito prazer e me fez perambular bastante. Mas o que mais me atrai nele é o fato de ter produzido uma poesia que menos se voltou para os acontecimentos, que menos expressou opiniões, que mais foge ao senso comum. Além disso, me atrai também o esforço permanente de experimentação, até o final. E tem também a prosa extremamente interessante, de alta inventividade, que não descaiu para a crônica fácil. E a experimentação dessa prosa, perto da poesia, faz lembrar como ele compôs sua obra como um universo cultural. E aí é um prazer poder ler um autor que assistiu em Londres a Kathleen Ferrier cantando Gluck, e que registrou isso. Ou que disse que quem nunca ouviu determinado madrigal de Monteverdi é um pagão musical.Mas ainda me atrai a importância que as artes plásticas têm na sua obra. É só ver como algumas obras ou alguns artistas plásticos desencadearam alguns dos bons poemas de Murilo Mendes. Sei que só ter interessses culturais, grande conhecimento de música e artes plásticas, não faz um poeta. Mas se essas coisas se juntam, o bom poeta e esses conhecimentos, então vejo uma coisa que me aguça a imaginação, a vontade de conhecimento. E até acho, por exemplo, que também as artes plásticas (falo disso aqui, já que adiante me perguntaram sobre música) me ensinaram muita coisa para a escrita; alguns poemas meus que não falam de nenhuma obra de artes plásticas, na verdade dialogam em sua constituição com certos quadros, certos artistas.

11 - Desculpando-me de antemão pelo possível reducionismo, creio que há duas vertentes mais trabalhadas em seus livros: a memória e a linguagem. Para mim, é difícil ver as pontes entre esses dois grandes campos. Quais são elas para você?

JULIO - Concordo quanto à verificação das duas vertentes. Só que não vejo dificuldade na aproximação das duas. O enfrentamento da memória se dá como jogo entre o impulso de reconstituição e a constatação do esgarçamento, justamente a ponta da faca em que, entre construção e desequilíbrio, se consegue ou não formar um poema. A memória fornece não fatos, episódios, mas recortes, assim como fornece vocabulário, sons, imagens, sentimentos, etc. A memória é também uma elaboração, entre tantas outras que participam da elaboração do poema. E lidar com a linguagem talvez seja indagar sobre a possibilidade de lidar com aquilo que é fornecido pela memória, sobre a possibilidade de articular esses elementos com o presente, com a forma presente de um poema.

Um poema inédito de Júlio Castañon Guimarães:

DE UM MODO

uma fala tramada
de que se extraísse:
- com certeza me recuso
à incursão sem roteiro

do que então se desfiariam
traços de um esboço
(de cena talvez canção)
que buscassem se sustentar
seja nas fraturas de um diálogo
pelos arredores da desolação
seja nos restos já imersos
em alguma sombra do pensamento

para uma mesma fala
de que sequer se escutasse:
- se estropiados os empenhos
pois remonto à recusa

Para ir além:



Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 7/4/2003

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